HISTÓRIA E CULTURA

As escolas clássicas de armas do Japão - Parte 3

armas do shinto -ryu 2Quando se prepara para lançar, acima, apóia o peso sobre a perna de trás e usa o braço e a mão que estão à frente para mirar. No ato do lançamento, abaixo, o peso é transferido para a perna da frente, de modo que o movimento do braço que lança possa seguir até o fim com suavidade. Uma das grandes diferenças entre a arte essencialmente marcial da escola de Otake Sensei e todas as outras artes e caminhos marciais é que, para um espadachim-guerreiro, qualquer golpe aplicado corretamente acarreta a morte do adversário, e o menor erro de discernimento implica a morte, geralmente instantânea, do próprio espadachim. Um corte na virilha causa a morte em vinte segundos; um corte nas axilas mata mais rápido ainda, e um corte no lado do pescoço rompe a veia jugular e mata em três ou quatro segundos.

A katana, a espada japonesa tradicional de combate, é afiada como uma navalha. Por isso, não há nenhum outro sistema de combate em que cada movimento seja tão vital- ou tão mortífero – quanto no ken-jutsu, a arte do espadachim.

Para lutar-se corretamente segundo o estilo dessa tradição, a espada é usada de muitas maneiras diferentes contra um número limitado de alvos. Esses alvos são determinados pelos pontos vulneráveis da armadura japonesa. Infligemse cortes no rosto, na parte de baixo dos pulsos, na parte de dentro dos braços (do bíceps), nos lados do pescoço, nos lados e na frente do abdômen na altura da cintura e na parte de dentro das pernas. A alabarda pode atingir também as panturrilhas, que são para a espada um alvo muito baixo. Em todos esses lugares há espaços entre as partes da armadura; além disso, em todos eles passam as principais artérias e veias do sistema circulatório do corpo.

armas do shinto-ryu

É interessante notar que esses alvos lógicos para um espadachim-guerreiro são, em sua maioria, simplesmente ignorados na forma esportiva de esgrima chamada kendô. No kendô, os alvos são o topo da cabeça, a garganta, os ombros, o centro e os lados do peito.

Existe a crença firme de que os katás são fruto de uma inspiração divina. O Mestre Fundador recebeu-os do céu numa visão e depois registrou-os para que fossem transmitidos perpetuamente aos seus sucessores. Para que, pois, estudar o que é terreno quando se tem nas mãos o que é celeste?

Em segundo lugar, a divindade e a perfeição são coisas correlatas: os movimentos dos katás abarcam quase todas as ações imagináveis que podem ser feitas com uma espada, e é quase certo que as que não constam dos katás simplesmente não teriam valor de combate.

Em terceiro lugar, Otake Sensei acha que o embate de estilo livre pode gerar maus hábitos nos alunos. Os praticantes começam a “segurar” os golpes, ou seja, a parar a espada antes que seus movimentos atinjam a plenitude da força e do poder de penetração. Além disso, no torneio, um fator de competição começa a substituir a cooperação, e a responsabilidade e o perigo de se ter nas mãos uma arma de verdade são substituídos pela atitude mental do esportista que maneja uma arma de brinquedo.

Por fim, Otake Sensei nos deixou claro que o verdadeiro valor dos katás não está somente no fato de eles refinarem a habilidade marcial do praticante – aguçando as suas reações e melhorando o seu equilíbrio, a sua capacidade de julgar o momento correto de atacar, a sua velocidade e a sua precisão -, mas essencialmente no fato de instilarem no aluno o autocontrole e a disciplina. Os Katás, ao mesmo tempo que ensinam as pessoas a matar, ensinam também que não convem usar a violência.

O Iai – Jutsu

armadura samurai

 

A prática do combate com armas de madeira é apenas uma das partes do treinamento. A outra parte, do iai-jutsu, é a clássica preatica de uma pessoa com uma espada de verdade.

No Japão, muitos homens praticam o iai-jutsu e o iai-dô; para a maioria, porém, essas artes são exercícios físicos ou aspectos da prática do Budismo Zen. Quando Mestre Otake desembainha a sua espada, toda a finalidade desse gesto se faz perceber. Ele imagina à sua frente um oponente real; nunca perde de vista a finalidade devastadora de sua espada.

O iai-jutsu consiste, em boa parte, na busca do golpe de espada único e perfeito. Trata-se da luta depurada e reduzida a um único e crucial momento, como no famoso desafio do filme Os Sete Samurais, de Akira Kurosawa, que termina em morte. Levanta-se de fato a questão de o que aconteceria caso tivesse de haver um segundo golpe. Na Katori Shinto Ryu, os alunos aprendem uma sucessão de golpes, o que se aproxima muito de uma situação de conflito real.

Em muitos katás do iai-jutsu, o espadachim parte da posição agachada. Esses katás são concebidos como reações a um ataque noturno. O executante permanece agachado, para não ser visto pelo seu agressor e dá um salto no último instante, desferindo simultaneamente um ou mais golpes. Os katás cobrem sistematicamente ataques vindos da frente, dos lados e pelas costas, bem como múltiplos ataques vindos de múltiplas direções. A essência da arte é a velocidade coruscante e a precisão absoluta, e o objetivo é o de derrubar um agressor com o menor número possível de golpes. Presta-se grande atenção à correta colocação da espada no cinto antes do início do movimento e à sua rápida e eficiente recolocação na bainha depois do embate.

tashemiguiri movimento de corte

 

Na mente da maioria dos japoneses, o iai-jutsu e o iai-dô são associados ao Budismo Zen; não, porém, para os adeptos da Katori Shinto Ryu. Eles aprendem um sistema de encantamentos budistas que podem ser usados no campo de batalha. O guerreiro que estudou o Budismo esotérico executa com suas mãos uma série de gestos mágicos, como explica Mestre Otake:

Dentro do currículo do heiho (‘o método do soldado’), ou seja, nas artes da guerra, encontramos algo chamado kuji no in, ou ‘a inscrição das nove letras ou nove sinais’. Essa prática, sem dúvida alguma, foi uma das contribuições dadas pelo Budismo místico às artes da estratégia. É uma das práticas do Budismo Mikkyo, que trata de práticas místicas, encantamentos e invocações.

trinamento com bokens

Treinamento com bokens, espadas de madeira.

O Kuji no in ”A escola da palavra verdadeira”

O kuji no in é um prática exotérica da escola Mikkyo de budismo Shingon. Há nove sinais, e cada um deles tem um nome: rin; pyo; to; sho; kai; jin; retsu; zai; zen. Eles compõem o kuji no in. Depois de dominar esses nove e unificar o corpo e a mente por meio da prática, você pode usar o que se chama de décima letra. Para tanto, você faz a espada-de-mão, inscrevendo nove linhas na palma da mão. Cada uma das linhas representa uma das nove letras, e, juntas, elas formam uma grelha. Quando pomos mais um caractere no centro da grelha, isso se chama ‘o método do décimo caractere’ ou ‘da décima letra.

mudras

 

Insere-se no centro da grelha uma décima letra, escolhida dentre um conjunto determinado de caracteres chineses. A décima letra é escolhida de acordo com as suas necessidades. Se você está atacando, ou está sendo atacado, ou não quer que o seu navio afunde no mar, ou quer curar uma doença, tem de inserir o caractere apropriado no centro da grelha.

Imagine, por exemplo, que você fosse fazer uma viagem de navio. Nesse caso, desenharia a grelha das nove letras e, no centro, inscreveria o caractere que significa ‘dragão’. Então, mesmo que o seu navio afundasse, você não se afogaria. Cortaria as letras rapidamente e faria uma invocação específica. A invocação o deixaria confiante de que, mesmo que o seu navio fosse a pique, você seria salvo.

Esse método da décima letra é necessário quando você se determina a fazer alguma coisa e precisa ter uma atitude firme e inabalável, ou seja, precisa ter fé na sua capacidade de conseguir. Nesse caso, você usa a inscrição das nove letras ou o caminho da décima letra para instilar essa atitude no seu espírito e na sua mente.

Ao determinar a estratégia marcial, é essencial que você tenha uma confiança inabalável na sua própria capacidade. Deve ter uma convicção capaz de romper qualquer barreira, transpor qualquer obstáculo. Para ilustrar esse ponto, temos a antiga história de um casal de namorados. A jovem foi atacada por um tigre assassino e ficou gravemente ferida. Por mais que o namorado tentasse curá-la, nada havia que ele pudesse fazer, e ela morreu. Fora morta pelo tigre; e, das profundezas do seu próprio sofrimento, o namorado determinou-se a vingar-se do tigre por ter matado a sua amada.

Tomou seu arco e suas flechas e, todos os dias, entrava nas matas em busca do tigre. Por fim, certo dia, viu a distância a forma de um tigre adormecido e percebeu de imediato que aquele era o tigre que matara sua namorada. Estirou o arco, mirou cuidadosamente e desferiu a flechada. A flecha perfurou profundamente o corpo do tigre e o jovem correu adiante para confirmar que ele estava morto. Quando chegou lá, porém, percebeu que sua flecha havia perfurado uma pedra listrada semelhante à forma de um tigre adormecido.

Depois disso, a reputaçâo do jovem no povoado em que vivia cresceu, pois todos começaram a comentar sobre o quanto ele era forte, capaz de perfurar uma pedra com uma flechada. Os outros queriam ver se ele seria capaz de fazê-lo de novo. Mas, por mais que ele tentasse, as flechas batiam na pedra e caíam. Percebeu ele que isso acontecia porque estava tentando sOmente cravar uma flecha numa pedra. Antes, quando pensara que a pedra era o tigre, a determinação de vingar sua amada possibilitara que ele perfurasse até mesmo uma pedra com sua flecha. Essa história deu origem ao ditado japonês: ‘Uma vontade forte pode furar uma pedra:’

O homem de estratégia tem de ter uma tal vontade forte, uma tal convicção inabalável, pois é nessa espécie de crença ou fé que uma força incrivelmenc te poderosa se manifesta. Sem esse tipo de convicção, até mesmo os mais nobres esforços se perdem.

Isso vale, evidentemente, não só para a estratégia marcial, mas para todos os aspectos da vida. A história do Japão nos fornece um outro exemplo. Na época das guerras entre os clãs Taira e Minamoto, no período da história do Japão em que a casta guerreira estava tomando forma, ocorreu, em 1184, a Batalha de Yashima. Nela, os guerreiros de Taira desafiaram os de Minamoto a tentar derrubar com uma flecha um leque que estava preso no alto do mastro de um de seus navios. Os guerreiros de Minamoto, que estavam em terra olhando para os navios, perceberam que seria extremamente difícil para qualquer homem atirar uma flecha a tão grande distância, quanto mais acertar o alvo, fixado no mastro balouçante de um navio em águas encapeladas.

Mesmo assim, um certo guerreiro chamado Nasu no Yoichi apresentouse e disse que tentaria derrubar o leque do alto do mastro. Incontinenti, entrou com seu cavalo nas águas rasas. Encaixando a flecha na corda do arco antes de puxá-lo, percebeu que seria muito difícil mirar o leque, que balouçava como o mar. Invocou então o nome da sua divindade tutelar, que era também a divindade tutelar do clã Minamoto: o grande bodhisattva Hachiman, em quem cria firmemente.

Fez um voto ao grande bodhisattva Hachiman, o deus da guerra, que, mesmo que morresse no dia seguinte, não se arrependeria de sua vida se fosse capaz de atingir o leque com sua flecha. Pediu então a Hachiman que acalmasse as ondas, de modo que o alvo não se mexesse tanto. Milagrosamente, naquele mesmo instante, o mar se acalmou; o guerreiro estirou o arco, desferiu a flechada e atingiu o alvo. Os guerreiros de ambos os exércitos aclamaram sua grande habilidade.

“Provavelmente, esse milagre é um símbolo. O acalmar das ondas simboliza a tranqüilização do seu próprio espírito, que ocorreu quando ele invocou sua divindade. Provavelmente, foi por ter acalmado seu próprio espírito que ele foi capaz de atingir o leque no ponto exato em que as hastes se encontram. É isso que quero dizer quando falo de fé ou convicção. Os guerreiros tinham de haver-se com situações especialmente difíceis.”

Os Usos dos Nove Sinais

Otake Sensei já explicou que o fundador da Katori Shinto Ryu, Choisai Sensei, incorporou o uso de técnicas esotéricas da tradição budista para aumentar a boa fortuna dos guerreiros. Para tanto, o guerreiro precisa executar a série de gestos de mão chamados kuji no in e selar o encantamento com um décimo movimento secreto. Esse sistema pode ser usado de várias maneiras benéficas por um praticante instruído.

Em toda parte, é natural que os seres humanos, quando começam a ter muitos problemas, procurem algo em que se apoiar, algo que aumente a sua capacidade de lidar com a situação. Para os guerreiros do Japão, esse algo foi proporcionado pelas doutrinas da escola budista dos encantamentos e domisticismo. Digo isso muito embora se pense comumente, hoje em dia, que as artes da guerra e da espada são em tudo idênticas às artes do Budismo meditativo, e muita gente diga que a espada e o Zen são a mesma coisa.

Porém, embora a essência do Zen seja a mesma essência de todo o Budismo, o Zen é uma forma que exige um período de treinamento extremamente longo. Esse treinamento consiste em ficar sentado de frente para uma parede branca. As únicas instruções do praticante são a de não pensar em nada, e, mais ainda, de não pensar em não pensar em nada. O domínio dessa prática leva décadas. É necessário um tempo enorme para penetrar no domínio do não-ego.

“A escola Mikkyo, por sua vez, oferece uma prática ou uma forma de atividade concreta por meio da qual a pessoa pode entrar nesse mesmo estado de auto-apagamento. Essa atividade é a prática da formação das ‘Nove Letras’ ou sinais de mão. O uso de uma técnica concreta como essa é muito mais rápido.”

Essas técnicas mágicas também podem ser usadas para curar os doentes. O paciente que procura Mestre Otake senta-se em silêncio enquanto o Mestre escreve encantamento”s sobre uma folha de papel. Ele desenha uma silhueta simples do corpo humano e, no lugar do desenho correspondente à parte do corpo que precisa de tratamento, as nove linhas entrecruzadas que representam o kuji no in. Acrescenta então o décimo sinal. O papel do desenho é dobrado em forma de leque e encaixado num gravetinho que serve de cabo.

Então, Mestre Otake coloca o leque sobre o altar da família e, de pé diante do altar, faz os nove sinais de mão. Pega o leque de papel e o passa sobre o paciente, depositando-o depois sobre o local da doença. No fim, o paciente tem de levar o leque até as margens de um rio, cravar na terra três varinhas de incenso acesas, atirar o leque na água e ir embora sem olhar para trás.

Esses ensinamentos do Fundador da Katori Shinto Ryu são úteis para todos os aspectos da vida:

Os principais guerreiros ocupavam-se do estudo de muitas coisas que envolviam práticas mágicas e as artes das fórmulas mágicas e encantamentos. Essa prática misteriosa inclui a arte da cura de doenças; métodos para entrar na fortificação ou castelo de um inimigo; e métodos de proteger o próprio castelo contra sítios ou ataques. Inclui, na verdade, um número incalculável de artes.

Essas artes são preservadas na Katori Shinto Ryu, onde, por exemplo, temos métodos para a remoção de objetos alojados no olho e meios para a cura de doenças. Essas práticas de cura são chamadas, no Japão, de te-ate. O nome implica o toque das mãos ou a imposição de mãos.

A mão pode ser usada para gerar energia. Nos tempos antigos, provavelmente tinha ainda mais poder do que tem hoje em dia. Tomemos o exemplo de uma criança que está com dor de estômago e se queixa disso para sua mãe. A mãe corre com o filho para o consultório médico, mas encontra-o fechado. Vai para vários lugares à procura de alguém que cuide da criança, mas não acha ninguém. Por compaixão, então, ela procura confortar o filho, tocando-o com suas próprias mãos.

De modo quase milagroso, a criança sente um grande alívio, ou mesmo sente a dor desaparecer por completo. Nesse caso, foi o amor da mãe que passou por suas mãos, confortou a criança e provocou o alívio. Às vezes, essa energia pode ser muito mais eficaz do que a de um estranho que por acaso é médico e diz: ‘Onde está doendo?’ ou ‘O que você está sentindo?’

É por isso que certas pessoas, quando sofrem, por exemplo, de uma inchação ou uma dor em algum lugar, podem aliviar-se ou mesmo curar-se completamente por meio do poder da lei budista. Elas fazem uso do seu próprio poder psicológico, ou seja, do poder de Deus. A eficácia desse poder depende da convicção ou da fé da pessoa.

Nestes últimos tempos, temos ouvido falar muito da psicocinese e dos poderes psicológicos ou ocultos. Para ativar esse tipo de poder, qualquer que seja o nome que se lhe dê, a pessoa tem de ter uma fé ou uma crença implícita na existência do poder e uma convicção da sua eficácia. A pessoa plenamente convicta de que esse método poderá curá-la será curada milagrosamente. Já vi isso acontecer inúmeras vezes. É por isso que penso que essas coisas não devem ser chamadas de ocultas, nem mesmo de milagrosas.

Aprendi por experiência que essas coisas misteriosas acontecem de fato.

Essa fé, essa convicção, pode operar milagres. Não estou me referindo aos casos de coincidência, nos quais uma pessoa pensa em algo e aquilo que ela pensou acontece. A convicção pode realmente produzir e manifestar milagres. É uma questão de fé. Hoje em dia, muitos acreditam em Deus ou no Buda. Não obstante, qualquer que seja a opinião dessas pessoas, esses eventos milagrosos realmente acontecem.”

No que diz respeito aos armamentos, eles são instrumentos de mau agouro. Não devem ser usados pelo homem do Tao. Isso porque as ações das armas terão a sua retribuição; espinheiros e abrolhos crescem nos locais onde exércitos estiveram aquartelados. As grandes guerras seguem-se inevitavelmente anos de escassez. O homem do Tao, quando está em casa, faz da esquerda o lugar de honra; e, quando usa armas, faz da direita o lugar de honra. Só usa as armas quando não pode evitá-lo e não se agrada de suas conquistas. Caso se agradasse delas, é porque teria gosto pelo morticínio dos homens. Aquele que se agrada do morticínio dos homens não pode ter a sua vontade imposta ao mundo.

Tao Te Ching, de Lao Tzu
Matéria extraída do livro ”O caminho do guerreiro de Howard Reid e Michael Groucher” Editora Cultrix

Fonte: http://artesmarciaispaulonetto.wordpress.com