Somos o que comemos: A Cultura da alimentação - É sabido que a satisfação das necessidades nutricionais é condição indispensável à sobrevivência dos seres humanos. Mas, ao mesmo tempo, que os significados da alimentação não podem ser apreendidos apenas a partir de indicadores nutricionais. Como dito por Fischler (1979: 1), o homem é um onívoro que se alimenta de carne, de vegetais e de imaginário. Assim, o ato alimentar implica também valoração simbólica. Dessa forma é que podemos entender que o que é considerado comestível em uma sociedade – ou em um grupo social – não o é em outra. Qual a boa comida? O que se come em dias comuns, finais de semana, dias de festa? Que alimentos são considerados perigosos? Quais os alimentos tidos por saudáveis? E quais os proibidos? Homens, mulheres, idosos(as), jovens e crianças: quem come o quê? A fome e a sede, necessidades vitais, são formuladas e satisfeitas em termos culturais, sociais e históricos. Daí a diferenciação, estabelecida por DaMatta (1987:22) ao analisar o caso brasileiro, entre alimento e comida: “toda substância nutritiva é alimento, mas... nem todo alimento é comida”.
Assim, o que se come, com quem se come, quando, como e onde se come, as escolhas alimentares, enfim, são definidas pela cultura: “o homem se alimenta de acordo com a sociedade a que pertence” (Garine 1987:4).
Dize-me o que comes, e eu te direi quem és. O adágio de Brillat-Savarin (1995), datado do início do século XIX – que, segundo Aymard et al. (1993:16), teria origem em um antigo ditado alemão, Der Mensch ist was er isst, cuja tradução seria “o homem é aquilo que come” –, indica que, perpassada por valores simbólicos, as escolhas dos alimentos podem indicar o status de um indivíduo em uma sociedade, assim como a cozinha de um grupo social, agindo na conformação da relação de pertencimento de seus membros, expressa sua identidade.
Mas se as classificações, práticas e representações que caracterizam um sistema culinário agem na incorporação do indivíduo a um grupo social, também é possível afirmar que, ao se alimentar, o indivíduo incorpora as propriedades do alimento. Temos aí o princípio da incorporação, como proposto por Fischler (1993). Para esse autor, a incorporação “é o movimento através do qual fazemos o alimento transpor a fronteira entre o mundo e nosso corpo... incorporar um alimento é, em um plano real, como em um plano imaginário, incorporar todas ou parte de suas propriedades:
tornamo-nos o que comemos. [...] É certo que a vida e a saúde da pessoa que se alimenta estão em questão cada vez que a decisão de incorporação é tomada. Mas também está em questão seu lugar no universo, sua essência e sua natureza, em uma palavra, sua própria identidade: o objeto incorporado intempestivamente a pode contaminar, transformar”... (Fischler 1993: 66; 69). Dessa forma, sugere Fischler (1993), se o alimento constrói a pessoa que o ingere, é compreensível que essa busque se construir no ato alimentar. Daí o autor deduz a necessidade vital de identificação dos alimentos, fonte principal da atual ansiedade em relação à alimentação, indagando: “Se não sabemos o que comemos, não se tornaria difícil saber não somente o que nos tornaremos, mas também o que somos?” (Fischler idem: 70).
É a partir desse quadro interpretativo, refletindo sobre a comida industrializada das sociedades contemporâneas, que Fischler (1993:218) cunha a expressão Objeto Comestível Não Identificado (OCNI), uma transposição jocosa, para o tema alimentação, do termo utilizado em referência a discos voadores, artefatos produzidos por seres de outros planetas, Objetos Voadores Não Identificados (OVNI). E será através da análise de alguns exemplos que evidenciam a ansiedade dos moradores de Porto Alegre entrevistados ante a presença de elementos desconhecidos nos alimentos a eles disponibilizados, ou, mais precisamente, através de associações construídas a partir desses exemplos, que buscar-se-á analisar suas percepções referentes aos alimentos transgênicos.
O Paradoxo do Onívoro e o Desconhecido na Comida
A ansiedade humana em relação à alimentação teria origem, segundo Fischler (1993), no paradoxo do onívoro, manifestando-se através da ambivalência entre neofilia e neofobia. Ou seja, o ser humano, para satisfazer suas necessidades nutricionais, precisa introduzir alimentos variados em sua dieta. Mas, ao mesmo tempo, deparase com os perigos oferecidos por novos alimentos. Inovação e prudência seriam, desse modo, características contraditórias do onívoro em suas escolhas alimentares.
Cabe aqui uma precisão, explicitada por Ferrières (2002:13) em seu estudo sobre a história dos medos alimentares a partir da Idade Média. Enquanto o medo seria referente a um objeto conhecido e claramente identificado, a angústia, a ansiedade, mais difusas e difíceis de suportar, seriam suscitadas pelo desconhecido. A inquietação diante dos alimentos modernos, gerada por acréscimos em sua composição – conservantes, corantes, agrotóxicos, aditivos etc – ou por novos processos de transformação, é atestada pela multiplicação, nas últimas décadas, de rumores alimentares (Fischler 1993:218). Vejamos como essa ansiedade se expressa entre alguns dos moradores de Porto Alegre entrevistados.
Os enlatados, eu compro, mas morro de medo! [...] Parece assim que eu penso “ah, aquela coisa ficou ali dentro tanto tempo!”. Que nem o milho verde, que eu adoro, pra pôr numa salada. Às vezes eu abro, e dá vontade... [gesto significando ato de jogar fora] (Clara). Até que chega no supermercado, até que o cara compra, o produto passa por muitas coisas, e o cara não sabe por onde ele passou [...] Muitas coisas eles botam ali no produto [inscrições nos rótulos] porque a lei exige, mas quem me garante aquilo lá? Eu não tenho condições de analisar. Eu sou um cara muito desconfiado (Álvaro).
A composição dos alimentos, seu processamento e procedência, bem como a trajetória que percorrem até serem colocados à disposição dos consumidores, ou, mais precisamente, o fato de serem obscuros, seria, assim como apontado pelos informantes, fonte de desconfiança. Nas sociedades urbanizadas, em que ocorre o aprofundamento da separação entre produtor e consumidor, o processo de produção é, cada vez mais, distante do consumidor puro (Cazes-Valette 1997:212).
No processo de constituição do consumidor puro, temos que ocorre ao mesmo tempo em que, ao longo do século XX, intensifica-se a transformação industrial dos produtos agropecuários e a indústria agroalimentar torna-se capaz de, através de técnicas e métodos desenvolvidos, criar novos produtos, “cuja forma física e aparência disfarçam suas origens industriais e os põem em competição direta com produtos de safras prontamente identificáveis e alimentos in natura”. Esse processo – que tem na margarina um caso exemplar – foi denominado, por Goodman et al. (1990:77), de substitucionismo.
Temos ainda a considerar a crescente expansão, a partir dos anos 1960, da variedade de produtos alimentícios disponibilizados ao consumo (Warde 1997:178-179). E, também, como sinalizado por Rial (1996), referindo-se às populações urbanas dos países desenvolvidos, as significativas alterações ocorridas no modo alimentar.
No passado, a alimentação era fortemente determinada geograficamente (por exemplo, produtos regionais dificilmente encontráveis em outros lugares), temporalmente (produtos de estações do ano) e simbolicamente (imperativos religiosos que determinavam tabus alimentares). As ocorrências alimentares serviam para pontuar a jornada, interrompendo o trabalho e instaurando uma atmosfera de sociabilidade, freqüentemente familiar. [...]
Estamos longe dos imperativos sazonais e religiosos que limitavam o leque de opções e a multiplicação dos contatos alimentares se fez acompanhar das opções colocadas a nossa disposição. Assistimos a uma ampliação da variedade de produtos e da possibilidade de encontrá-los em lugares muito distantes de sua origem e em qualquer período do ano. Por outro lado, a dualidade simples trabalho-repouso parece ultrapassada no mundo moderno. [...] O número de vezes em que se absorve alimentos ultrapassa de longe o número de refeições de outrora. (Rial 1996:95)
Dessa forma, a partir da multiplicação de opções alimentares e alterações ocorridas no modo alimentar, da constituição do consumidor puro, bem como do processo de substitucionismo, ou melhor, da atualização que acarretam ao dilema do onívoro, podemos apreender a ansiedade urbana contemporânea diante da alimentação.
O que é misturado ao pó, que se transforma em sopa? O que é acrescentado aos grãos de milho verde, para que se conservem por tanto tempo na lata? Ou ao leite de caixinha, para que demore tanto a estragar? Com o que é alimentada a galinha, cujos pedaços congelados são oferecidos ao consumo, acondicionados em bandejas, envoltas por filme plástico?
Fontes de desconfiança e ansiedade, os Objetos Comestíveis Não Identificados seriam freqüentemente apontados pelos moradores de Porto Alegre entrevistados como causa de doenças. E entre os produtos alimentícios geradores de desconfiança, a galinha parece ser um dos principais objetos de preocupação. A ansiedade em relação às galinhas modernas teria como componente a desconfiança ante a presença do desconhecido enquanto ingrediente de sua alimentação, ou melhor, o temor decorrente dos supostos efeitos advindos de sua incorporação ao organismo humano.
É assim que Helena, moradora de Porto Alegre, creditaria o fim precoce da infância da filha ao consumo de carnes contendo hormônios, alertando para os riscos da alimentação moderna. Os hormônios que dão pras galinhas, é uma coisa que me preocupa muito. Acho que por isso que eu tenho tanto nojo de galinha. Sabe, a Flávia [uma das filhas da informante] está com nove anos, e está aparecendo seio na Flávia, está com pêlo, está com tudo, e é muito cedo. Então eu não sei se essa alimentação que a gente está dando não tem a ver com isso. Todos esses hormônios que as galinhas... [...] Eu noto que as crianças de hoje, elas estão com os hormônios... a adolescência delas está sendo muito precoce (Helena).
Se, como visto até aqui, a presença de elementos desconhecidos na comida moderna gera, entre os moradores de Porto Alegre entrevistados, desconfiança e ansiedade, não é de surpreender que encontremos o mesmo tipo de reação diante dos alimentos transgênicos, resultantes, a partir de modificações genéticas, da introdução de genes estranhos aos vegetais habitualmente consumidos.
Sujo e Limpo: Represetações sobre a comida industraalizada
Às vezes tu nem sabe o que está comprando. Não sabe de onde vem, se tem agrotóxico, não sabe o que eles colocam pra produzir. Não sabe se é limpo, não sabe se é sujo (Cleusa). Como na fala de Cleusa, moradora de Porto Alegre, temos que à presença do desconhecido no alimento é associada a idéia de sujeira. Entre os informantes, vários seriam os que manifestariam considerar sujos os produtos trazidos do supermercado.
Chego em casa, tiro, lavo... Bah, não consigo nem ver! Nem um frango e nem outra carne sem lavar! Meto na pia, corto tudo, tiro, limpo, lavo direitinho e separo. [...] Eu tenho uma mania, eu passo um paninho umidozinho em tudo o que é saquinho, tudo o que é latinha, tudo que é coisa que eu trago [do supermercado] (Margarida). No que se refere, particularmente, às frutas e verduras, inúmeros seriam os moradores de Porto Alegre entrevistados que apontariam o descascamento e/ou lavagem como “medidas profiláticas” para evitar eventuais efeitos nocivos causados pela presença de impurezas – especialmente resíduos de agrotóxicos – nos alimentos.
Meu pai não come, se ele vê tu comer um tomate com casca! Meu pai cuida muito isso aí, pra gente tirar, porque a concentração [dos agrotóxicos] está na casca (Rosane). As verduras, deixo de molho um pouco, pra sair o veneno. Eu ponho um pouquinho de vinagre, às vezes deixo só na água, porque a água elimina o veneno, né? Aí deixo de molho (Marta). As frutas que a gente compra no super, eu lavo tudo com sabão de glicerina. Pêssego, uva, essas coisas que a gente come assim. Banana eu não lavo, mas o resto, eu lavo tudo com sabão de glicerina (Dirce).
Descascando e lavando, os informantes considerariam ter, assim, expurgadas – física, mas também simbolicamente – as impurezas das frutas e verduras que consomem. Inúmeros são os estudos – particularmente os que tomam por objeto a alimentação em países desenvolvidos – que vêm apontando a crescente preocupação com a saúde nas escolhas dos alimentos, mas também com a boa forma, ou a adesão a novas morais alimentares2 .
Mas o que aqui importa remarcar é que, em depoimentos coletados para esta pesquisa, o desconhecido, impuro, sujo, seria identificado pelos informantes também como não-saudável. Da mesma forma, podemos sugerir a interpretação construída por Douglas (1976) das prescrições alimentares contidas no texto bíblico. Nesse sentido, Cleomar, adepta do Adventismo do Sétimo Dia, citaria o Levítico3 para explicar as restrições que sua religião estabelece em relação ao consumo de carnes. Separando animais “limpos” de animais “imundos”, a informante associaria a pureza do alimento – decorrente da ausência de “produtos químicos” – à saúde.
Deus, desde o início, quando criou o mundo, se preocupou que as pessoas vivessem bem, e vivessem felizes, e com saúde. Que não adianta tu viver, mas sem saúde. Aí não teria alegria nenhuma. [...] Eu tenho pra mim, que eu aprendi, o que eu acho que é errado em termos alimentares, o que eu acho que é certo. Acho assim que qualquer pessoa entende que os produtos químicos não fazem bem pra saúde. [...] Os produtos químicos, nossa! É super prejudicial, causa câncer, doenças as mais variadas, eu acho (Cleomar).
Essa visão pode ser melhor apreendida se levarmos em conta que, como evidenciado por Pacheco (2001) – no trabalho em que analisa, em duas diferentes comunidades da capital baiana adeptas do Adventismo do Sétimo Dia, as relações entre prática religiosa e hábitos alimentares –, na cosmologia adventista o alimento é um meio para a conquista/manipulação da saúde do corpo tomado como templo do Espírito Santo, instrumento físico a serviço de Deus. Esta ‘máquina’ precisa ser cuidada para funcionar bem, cumprir sua meta. A alimentação deve ser pautada pela necessidade e não pelo desejo, devendo o controle racional do comer subjugar os elementos emocionais. Assim, os princípios de alimentação fazem parte de um projeto mais amplo de racionalização da conduta com vistas a transformar o homem em instrumento de Deus e prova de sua glória (Pacheco 2001:158).
É assim que, tendo por norma que àquilo que se come cabe garantir a saúde do corpo, Cleomar afirmaria que a presença de “produtos químicos” nos alimentos – bem como modificações genéticas – comprometeria sua função, tornando-os possíveis causadores de doenças. Para melhor apreender a associação entre pureza do alimento e saúde, será interessante, ainda, analisarmos o caso relatado por Luísa e Paulo a respeito do leite consumido. A grande maioria dos moradores de Porto Alegre entrevistados declararia sua adesão ao leite longa vida, vários deles mencionando como vantagens a possibilidade de estocagem do produto – que permite que a aquisição do leite seja incluída no rancho, a compra semanal ou mensal, realizada em supermercado – e, uma vez aberta a embalagem, sua maior durabilidade.
Entretanto, alguns deles manifestariam considerar o leite fluido oferecido em saquinhos de melhor qualidade, ou mais saudável. Entre esses, estariam Luísa e Paulo. Veremos a seguir o caso por eles narrado, cabendo aqui mencionar que ambos definem-se como espiritualistas – ele kardecista, ela umbandista, médium. Segundo seu relato, toda a família, mas especialmente Paulo e uma das filhas do casal, manifestavam um problema de pele, de causa desconhecida. Buscando diagnóstico para o problema, Luísa realizaria uma consulta espiritual.
Eu perguntei... foi pra Mãe Oxum, uma entidade da umbanda. Aí eu perguntei pra ela, falei de umas coceiras, umas alergias, falei “não sei se vem dos cachorros, ou de alguma coisa que nós estamos comendo”. Eu até não estava sentindo coceira nenhuma, eu procurava pulga e não via, não via nada, mas como era muito seco, podia ser uma poeira, um cimento, nós estávamos mexendo com cimento. Aí ela disse que era do leite, que tinha um conservante que estava fazendo mal. O leite de caixinha, ele tem uns conservantes, umas coisas a mais ali, né? Então eles [o marido e a filha] observaram. Eu troquei de marca, mas não adiantou. Aí ele [o marido] comprovou, passou a tomar leite em pó, a Julia também (Luísa). No diagnóstico espiritual, a doença de pele teria sua causa, então, em algo que teria sido acrescido ao
leite longa vida para garantir sua conservação.
Conforme narrado pelo casal, seguindo a recomendação de Mãe Oxum, o leite de caixinha seria eliminado da dieta de Paulo e Julia que, assim, ver-se-iam curados do problema de pele. Temos, desse modo, que não apenas os informantes identificariam no elemento adicionado ao leite a causa da doença, como o fariam a partir do parecer da entidade espiritual, o que indicaria, é interessante notar, que também a partir do plano espiritual, simbólico, a comida moderna seria identificada como contendo substâncias estranhas, sendo, então, percebida como potencialmente maléfica. Assim, tendo anteriormente evidenciado que a presença de elementos desconhecidos nos alimentos industrializados gera, entre os moradores de Porto Alegre entrevistados, desconfiança e ansiedade, pode-se agora precisar que essa ansiedade é substanciada a partir da associação entre desconhecido e sujeira – ou impureza, desordem –, por sua vez percebida como não-saudável, fonte de doenças. Do mesmo modo – e, podemos sugerir, no campo do imaginário, a partir da mesma construção –, a maior parte desses informantes referir-se-ia aos alimentos geneticamente modificados como potencialmente prejudiciais à saúde.
O Natural e as Representações do Rural
O molho, eu gosto de fazer, que daí faz do gosto. O molho pronto, geralmente tem uns gostos meio estranhos, eu não gosto. Gosto de pegar o tomate, cortar, fazer. [...] Não gosto muito de enlatados. [Por que?] Não sei, acho que o gosto não é tão bom. Acho que às vezes o gosto não é bom. Não é que tem gosto ruim, mas a gente nota que não é um gosto natural, altera o gosto do produto, isso eu não gosto. Gosto de sentir o gosto natural dos alimentos (Gilberto).
Como no depoimento de Gilberto – bem como nos de muitos outros informantes –, a valorização do natural seria construída como reflexo da crítica ao artificial, qualificativo atribuído aos alimentos industrializados. Ou, como sugerido por La Soudière (1995:158-160), temos que, como reflexo da desconfiança ante o moderno, o natural e o rural seriam identificados como autênticos. As possibilidades de análise oferecidas por essa contraposição serão aqui exploradas.
Entre os moradores de Porto Alegre entrevistados, as verduras adquiridas em supermercados seriam percebidas como “muito grandes”, “sem gosto”. A galinha congelada, “parece palha, fica desidratada”. Do leite, “tiram todos os nutrientes”. Os ovos seriam considerados cópia dos “de galinha mesmo”. Talvez algumas das declarações que afirmam a superioridade do sabor dos alimentos não-industrializados se constituam em reação ao que poderia ser caracterizado como “gosto médio”, excludente de sabores fortes, proposto – como sugere Eizner (1995:14) – pela indústria agroalimentar. Ou, como evidenciado por Álvarez e Pinotti (2000), em estudo sobre as mudanças e permanências nos hábitos alimentares dos argentinos, “a insipidez dos alimentos oferecidos pela indústria alimentícia e a sensação de insegurança provocada pela perda de controle sobre a cadeia de operações de produção e elaboração da comida, provocam o resgate de variedades vegetais, animais locais ou regionais e produtos artesanais...” (Alvarez & Pinotti 2000: 272).
Assim é que molhos e temperos prontos, pratos congelados, bolos e sopas pré-preparados, pães e massas industrializados, alimentos enlatados e refrigerantes, seriam – juntamente com outros ítens, anteriormente mencionados – reiteradamente condenados. Em detrimento desses, as preferências declaradas indicariam os molhos, iogurtes, doces, bolos, pães e massas caseiros; galinhas e ovos caipiras; água e sucos; milho em espiga, vegetais e temperos frescos; verduras orgânicas.
O natural, fresco, caseiro, próximo, tradicional seria, dessa forma, afirmado em oposição ao artificial, processado, distante, industrializado, moderno. Os alimentos industrializados seriam percebidos como excessivamente manuseados e, ainda, provenientes de lugares distantes – em alguns depoimentos seria manifestada a preferência por produtos locais, gaúchos –, de origem não conhecida. Como no trabalho de Cazes-Valette (1997:224), seria valorizada a identificação da origem do produto, que, muitas vezes, passa por um ser humano, alguém conhecido – no caso estudado pela autora, que analisa o consumo de carne bovina na França pós-crise da vaca louca, o criador ou o açougueiro.
O alimento natural não seria apenas considerado o de melhor gosto. Em oposição ao alimento industrializado, seria apontado como puro e, dessa forma, saudável. Os adjetivos relacionados ao natural seriam atribuídos aos alimentos frescos, ou aos provenientes da feira, ou aos orgânicos, ou aos trazidos de fora. Como lembra Maciel (2001:51), a comida envolve emoção, trabalha com a memória e com sentimentos. As expressões ‘comida da mãe’, ou ‘comida caseira’ ilustram bem este caso, evocando infância, aconchego, segurança, ausência de sofisticação ou exotismo.
Ambas remetem ao ‘familiar’, ao próximo, ao frugal. O toque ‘da mãe’ é uma assinatura, e implica tanto no que é feito, como na forma pela qual é feito, que marca a comida com lembranças pessoais. É assim que, especialmente nos casos em que os moradores de Porto Alegre entrevistados têm origem no meio rural, mas, como se pode observar no depoimento de Karen, a seguir, não somente entre esses, os adjetivos relacionados ao natural seriam também atribuídos aos alimentos que remetem à memória da infância, da comida da mãe ou da avó.
A minha avó materna, que era italiana, a família quando veio da Europa se estabeleceu na zona rural, na colônia, eram colonos. E a minha avó, que está viva até hoje... ela é uma pessoa muito ligada à terra, sempre foi. E mesmo depois de vir morar na cidade, depois de uma certa idade ela veio morar com meus pais... ela manteve aquela profunda ligação com a terra. [...] Eu lembro da minha avó italiana, fazia uma polenta! A polenta, eu já adorava.
Mas depois, no dia seguinte, ela cortava a polenta em fatias, quando ela estava já seca, e fazia em cima de uma chapa. E eu comia aquilo com mel! Como era bom! Ai, como era maravilhoso! Polenta brustolada, como ela diz. Com mel. Que o mel, isso é uma coisa gozada, porque minha avó é italiana, meu avô é alemão, e alemão mistura muito doce com salgado, os italianos já não... Eu me lembro dos pães que a minha avó fazia, também. Eu ajudava ela, que eu aprendi a fazer pão com ela. E faço pão, e gosto, adoro fazer pão. Me lembro do perfume dos pães, do cheiro da massa crua (Karen).
É interessante remarcar que todos os informantes, inclusos os nascidos em Porto Alegre, expressariam, de algum modo, uma memória culinária rural, vivida ou herdada, isto é, experienciada diretamente ou a partir do vivenciado por seus antepassados. A ruralidade, mais que qualquer outro atributo, parece condensar todas as vantagens que distinguem o alimento desejável do alimento industrializado.
De fora são os alimentos que vêm do interior, do meio rural, cuja origem é associada diretamente ao produtor. De fora, podem ser os alimentos trazidos pelo informante, ou por alguém de sua família, quando em visita à região natal, ou por algum conhecido ou parente que de lá vem. Podem, também, ser os alimentos produzidos em chácara de algum conhecido, perto da cidade. Ou os adquiridos em alguma viagem, de produtores que os ofertam, à beira da estrada. Ou os comercializados em feiras – de produtos orgânicos ou não –, supostamente pelos próprios produtores. Ou, ainda, aqueles que, de algum modo – como os ovos, trazidos de fora pelo “pessoal do estacionamento”, para vender –, vindos do campo, chegam à cidade por canais outros que os formalmente constituídos.
Os alimentos que vêm de fora são considerados os melhores. Das verduras, é dito que “até a folha é mais macia”. A galinha, a carne e o leite, “não têm comparação”, “é outro gosto”, as do supermercado não chegam “nem a seus pés”. Os ovos “daquelas galinhas criadas com milho, a gema é super-vermelha, bem diferente”.
Podemos, assim, supor que, em relação aos alimentos, ocorra o correspondente ao indicado por Mathieu e Jollivet (1989:11-12), que, na França, debruçando-se sobre o tema representações da natureza, evidenciam que o senso comum urbano tende a associar ao campo, ao rural, os valores atribuídos à natureza e ao natural. Ou, ainda, processos semelhantes aos apontados por autores que, na Europa, vêm se dedicando ao
estudo da comida enquanto patrimônio – e aí o caso dos produtos de terroir franceses são particularmente significativos –, mostrando como produtos alimentícios e pratos, associados a uma região, e referidos a uma natureza e a um campo, a uma identidade, tornam-se, a partir das representações do mundo rural, bens de consumo especiais (Bonnain 1991; Bérard 1999; Delbos 2000; Rautenberg et al. 2000).
Temos, assim, que o rural tende a ser qualificado como natural, mesmo quando, dadas as características intensivas da produção agropecuária – que inclui a utilização de agroquímicos dos mais diversos tipos –, não o seria. Do mesmo modo que indicado por Eizner (1995:14) para o caso francês, talvez possamos identificar nessa valorização do natural e do rural mitos do natural e do artesanal, algo como a busca do consumo de “imagens dos sabores perdidos”.
A idealização do rural, transposta aos alimentos de fora, torna-se evidente em alguns dos depoimentos dos moradores de Porto Alegre entrevistados nascidos no meio rural. Em momentos diferentes, os mesmos informantes destacariam as delícias da comida do campo e, ao descrever a composição das refeições de sua infância, mencionariam a pouca variedade de alimentos disponíveis, ou mesmo a pobreza à mesa.
Percepções a Mesa
Chegando ao final do artigo, merece ser destacado que, no que se refere aos hábitos alimentares, a imagem de uma ruralidade idealizada não seria a única disjunção perceptível entre as visões expressas pelos moradores de Porto Alegre entrevistados e suas práticas. Embora cada um desses informantes declarasse, em algum momento, como visto, algum grau de desconfiança e ansiedade em relação à comida moderna, as descrições de seus cardápios cotidianos evidenciaria não apenas a inexistência, entre eles, de adeptos de dietas como o vegetarianismo e a macrobiótica, ou regidas pelo consumo de vegetais exclusivamente orgânicos – dietas que, como indicado por Ouédraogo (1998:18-19), em seu estudo das visões e práticas de consumidores parisienses adeptos da alimentação orgânica, seriam parte integrante de um estilo de vida, regido por uma ética “que valoriza extremamente a vida simples, a natureza e o natural, o artesanal e o rústico... associados à saúde, à ecologia, à pureza, à solidariedade” –, mas, e nem se poderia esperar que fosse de outro modo, o amplo consumo de alimentos industrializados.
Cabe aqui uma observação. Como indicado por Darmon (1993:77) – no estudo em que mostra que, há mais de um século, a crescente incidência de câncer vem sendo percebida, na Europa, como decorrente de hábitos, aí inclusos os alimentares, advindos com a civilização –, é comum, nas representações que as sociedades constroem sobre seu progresso, que os aspectos positivos do mundo moderno sejam omitidos. Assim é que talvez possamos entender que, embora o consumo de alimentos industrializados em geral, e pré-preparados em particular, seja bastante difundido, muito poucos seriam os informantes que remarcariam a praticidade, facilidade ou economia de tempo decorrentes de sua utilização, a maioria preferindo ater-se a comentar, como visto, o que percebem como seus efeitos negativos.
Observando as detalhadas descrições de refeições coletadas junto aos informantes, bem como os ítens presentes em suas listas de compras, pode-se notar algumas combinações interessantes. Gilberto – cujo trecho de depoimento é reproduzido no início do item anterior –, por exemplo, que prefere preparar seu próprio molho de tomates, evitando o produto industrializado, artificial, consome diariamente, no almoço, uma coca-cola light. Já na geladeira de Carla, em que só entram vegetais orgânicos, adquiridos na feira ecológica, freqüentada semanalmente, a coca-cola, presença obrigatória, não é a light. A preocupação com a dieta faria com que Lourdes fosse menos rígida em relação ao refresco que coloca à mesa do que com os ingredientes que utiliza na preparação das refeições.
Extrato de tomate, eu não compro. Eu vou na polpa de tomate, se eu quero engrossar meu molho... porque tem muito aquelas porcarias. Quer ver? Já te digo, olha aqui [a informante mostra a embalagem, que buscara no armário, embaixo da pia]. Eu compro a polpa de tomate. [...] Aqui não diz a composição? Vamos ver: tomate, açúcar e sal! Mas se tu pegar um extrato de tomate no supermercado, tu olha o que que tem! Um monte de coisa: conservantes, acidulantes, expectorantes [sic], não sei mais o quê (Lourdes).
Agora eu comprei o suco, aquele [nome do produto], com aspartame, eu acho. Então, como ele não engorda, eu gosto de tomar um suquinho assim, eu faço. É esse aqui ó, esse aqui é Tea de Limão. Bah! [olhando o rótulo] Tem quantidade de coisa aqui! Tudo artificial! Acidulante... edulcorante... lálálá... um monte de porcaria. Mas não tem açúcar! Então, isso aqui é liberado. Criança gosta, né? Essas porcariazinhas, a gente está tendo que ter (Lourdes).
Inúmeros seriam os exemplos equivalentes, referentes não apenas às bebidas, mas aos mais diversos produtos. É assim que Dirce, que prefere as verduras orgânicas, lava com sabão de glicerina as frutas e declarara não consumir galinhas de supermercado, manifestaria entusiasmo diante das misturas pré-preparadas para sopas: “Eu adoro sopa de pacotinho, aquele sopão. Ah, eu amo!”.
Do mesmo modo, teríamos pessoas que, preferindo fazer seus próprios doces, consomem freqüentemente macarrão instantâneo; recusando alimentos congelados ou embutidos, têm por costume utilizar bolos de caixinha; alimentando-se preferencialmente de vegetais orgânicos, consomem chocolates cotidianamente; negando-se a incluir enlatados em seus pratos, servem, em refeições familiares, pratos pré-elaborados. Ou, ainda, que acrescentam cebolas e tomates ao molho comprado pronto; ou utilizam as misturas pré-preparadas para sopa para “incrementar” seus próprios caldos. Retomemos aqui a questão que se colocara como ponto de partida para o percurso deste artigo: o que as visões e práticas dos informantes em relação à alimentação nos sugeririam a respeito de suas percepções sobre os alimentos transgênicos?
Apresentar-se-ia como tentadora a possibilidade de buscar estabelecer algo como uma classificação dos informantes, construída a partir de possíveis correspondências entre os perfis de relação com a alimentação e as interpretações e posicionamentos ante o tema transgênicos. Entretanto, as tentativas de identificar tais padrões evidenciariam sua inexistência. Pôde-se, ao longo da pesquisa, observar que, para os consumidores entrevistados, os alimentos transgênicos são percebidos como incluídos em uma série de medos contemporâneos, vindo a ser associados a clone, radiação, vaca louca, mutação, má-formação fetal e câncer. Entretanto, mesmo considerando os transgênicos potencialmente nocivos e declarando sua rejeição a esses alimentos, esses consumidores não adotam, efetivamente, a restrição a alimentos geneticamente modificados como critério de escolha de produtos alimentícios. Assim, ao mesmo tempo em que os alimentos transgênicos são afirmados como perigosos, entre tantos riscos com que se deparam em seu dia-a-dia os moradores de Porto Alegre entrevistados parecem não
eleger este como um dos riscos com os quais efetivamente se preocupar4 .
Ainda, evidenciou-se, entre os moradores de Porto Alegre entrevistados, a presença de ansiedade diante da comida moderna. Os produtos industrializados são desqualificados, ao mesmo tempo em que são afirmados como preferíveis os percebidos como naturais, associados a uma imagem idealizada do campo. Esses elementos indicariam uma disposição à rejeição aos alimentos transgênicos. No entanto, os mesmos alimentos produzidos pela indústria agroalimentar desqualificados nos depoimentos dos moradores de Porto Alegre entrevistados são por eles cotidianamente consumidos, o que leva a supor que o mesmo possa ocorrer com os alimentos geneticamente modificados.
Assim, se é possível afirmar que entre a maior parte dos consumidores entrevistados os alimentos transgênicos são objeto de rejeição, temos que essa opinião não necessariamente encontrará correspondência em suas atitudes diante das prateleiras dos supermercados e à mesa. Se bem é verdade que os organismos geneticamente modificados estão já bem mais presentes nas lavouras e mesas brasileiras e gaúchas do que gostariam os setores contrários aos transgênicos, temos que as contradições entre visões e práticas de consumidores observados, evidenciadas nessa pesquisa, indicam que as certezas a respeito do tema permanecem bastante aquém do que desejariam os setores pró-transgênicos. Não chegamos ao fim da história.
Renata Menasche é doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), professora da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS) e pesquisadora da Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária (FEPAGRO).
Transgênicos e saúde
Já ouviu falar de organismos geneticamente modificados (OGMs, ou transgênicos)? A discussão sobre o uso de alimentos transgênicos é hoje muito grande, mas mesmo assim, a maioria das pessoas não conseguiu entender muito bem qual é a polêmica.
o que são transgênicos?
São alimentos geneticamente modificados. Tudo o que forma os seres vivos é controlado pelo material genético, que é um grande conjunto de peças que definem as características de cada ser. O método de transgenia consiste na transferência de genes de um indivíduo para outro, sendo estes normalmente de espécies diferentes. Isso faz com que um indivíduo adquira características do o outro, sendo essas características positivas e/ou negativas.
Os estudos se iniciaram em 1972, com a descoberta do comportamento da Agrobacterium timafasciens, causadora de uma doença chamada galha de coroa, possuindo um ciclo muito diferente das demais bactérias. A bactéria insere parte dos genes dela na planta hospedeira, fazendo com que a planta passe a produzir um tumor que fornece alimento para a bactéria. Logo, essa é uma transgenia natural, que foi utilizada para veicular genes de um indivíduo em outro.
Os usos da transgenia
Os primeiros estudos da técnica foram conduzidos para a produção comercial da insulina, medicamento essencial a muitos diabéticos. Genes humanos foram inseridos em bactérias, que produzem a substância humana. Mas isso não gerou nenhuma polêmica, já que o organismo transgênico fica sem contato direto com os humanos e com o meio-ambiente.
Um dos principais fatores que contribuíram para o desenvolvimento da técnica foi os grandes ataques de pragas e doenças nas culturas agrícolas em todo o mundo, e ao alto custo e periculosidade de inseticidas e fungicidas agrícolas. A inserção de genes possibilitou a redução ou erradicação do ataque de certas pragas e doenças em algumas culturas, sem o uso excessivo de defensivos agrícolas (agrotóxicos).
Mas a transgenia possui muitas outras funções além do uso agrícola, como o uso na produção de medicamentos, uso na produção de enzimas e reagentes para indústrias, que inclusive já eram utilizados há muito tempo na indústria cervejeira.
melhoramento genético é o mesmo que transgenia?
Não. O melhoramento genético é qualquer esforço humano feito para que haja melhora de características da planta, sendo a maior desta área de pesquisa direcionada à seleção genética.
Todo o melhoramento se iniciou em 1865 pelo primeiro homem a estudar a genética: Gregor Mendel. A partir daí, a produção agrícola começou a alcançar maiores produtividades, possibilitando o suprimento de alimento para a população mundial, o que não seria possível sem o melhoramento genético.
A transgenia é, portanto, somente uma pequena parte do estudo do melhoramento genético, não devendo ser confundida com o todo.
Os benefícios dos transgênicos
São várias as vantagens certas e possíveis que o uso de organismos geneticamente modificados pode trazer. Dentre as principais estão:
- Melhoria da produtividade agrícola.
- Potencial de redução do uso de defensivos agrícolas (agrotóxicos).
- Possibilidade da fabricação de medicamentos que antes eram impossíveis.
- Possibilidade da suplementação nutricional em alimentos.
- Possibilidade de inclusão de vacinas em alimentos para países pobres.
- Possibilidade da redução dos custos dos alimentos.