"Ossos em Balde, Faca de Peixeira e 8% de Justiça: O Brasil que Não Consegue Resolver Seus Crimes" Você já parou pra pensar por que, quando alguém morre a tiros na periferia de Natal, ninguém nunca descobre quem foi? Não é mistério. É sistema. E não, não é só corrupção — embora tenha disso também, e aos montes. É pior: é um aparelho inteiro que simplesmente não funciona.
Um país onde matar alguém tem quase o mesmo risco de levar multa por estacionar errado. E tudo começa ali, no primeiro minuto depois do crime: na cena, no corpo, nas pistas que desaparecem como pólvora no vento.
Em 2014, uma reportagem da Globo mostrou algo que parece cena de filme de terror, mas era real: baldes de lixo cheios de ossadas humanas no pátio do Instituto Técnico-Científico de Polícia (ITEP) de Natal. Urnas funerárias abandonadas com cadáveres sem nome. Corpos empilhados em gavetas frigoríficas, um em cima do outro, como se fossem carne congelada em supermercado de bairro. E o pior? Ninguém se surpreendeu.
A Perícia que Mata Mais Que a Bala
No Brasil, 8 em cada 100 assassinatos resultam em condenação. Oito por cento. Isso quer dizer que 92% dos assassinos andam soltos, tomam cerveja no bar, votam, fazem planos… e dormem tranquilos. Porque sabem: o sistema não vai atrás. Compare isso com os EUA: 65% dos homicídios resolvidos. Reino Unido? 90%. França? 80%. Aqui, a impunidade não é falha. É regra. E o Rio Grande do Norte virou símbolo dessa tragédia. Em um prédio velho, com tinta descascando e fiação exposta, funciona o ITEP — responsável por toda a perícia criminal do estado. Lá dentro, os peritos trabalham com faca de peixeira, facão de açougueiro e até haste de guarda-chuva afiada para costurar cadáveres. Sim, você leu certo. Haste de guarda-chuva.
O diretor do instituto, Nazareno de Deus, chegou a dizer, sério, numa entrevista:
“É escolha deles usar isso. A gente fornece material adequado.”
Só que os peritos rebateram na hora:
“Compraram agulhas erradas. Compraram bisturis inúteis. A lâmina quebrava. Então a gente improvisa. O facão corta melhor.”
Imagina só: um homem morto a tiros, levado ao necrotério, e o cara que vai examiná-lo abre o crânio com um tesourão de jardinagem. Enquanto isso, parentes esperam anos por identificação. Três anos. Dois. Um. E o corpo fica ali, num balde, fedendo no fundo do pátio. Fabrício Fernandes de Sá Oliveira, perito criminal, disse algo que arrepia:
“As famílias ficam esperando. E o estado tem obrigação de investigar. Mas até agora, nada.”
O Laboratório que Nunca Funcionou
Tem mais. O governo federal pagou um laboratório novo em folha pro ITEP. Equipamentos modernos, tecnologia de ponta, tudo importado. Pronto para funcionar. Só tinha um detalhe: a rede elétrica do prédio não suportava. Resultado? O laboratório está lá, lacrado, como uma cápsula do tempo de um futuro que nunca chegou. Os equipamentos empacotados. As máquinas novinhas. E zero DNA sendo analisado. Por quê? Porque o estado do Rio Grande do Norte não investiu na estrutura física. Faltou dinheiro. Ou prioridade. Ou vergonha. O ex-secretário de Segurança, Aldair da Rocha, tentou explicar assim:
“O problema é o crescimento econômico. Todo mundo na região Nordeste tá passando pelo mesmo.”
Perdão? Crescimento econômico causa violência? Será que ele achou que o povo ia engolir essa? Claro que não. A verdade é outra: enquanto o estado crescia, a segurança foi esquecida. Investimentos zerados. Concurso público travado. Servidores indicados por padrinhos políticos. E o ITEP virou cabide de empregos: hoje tem 550 funcionários — mas deveria ter 280. Só que são poucos peritos. Muitos porteiros. Muitas secretárias. Muitos cargos de confiança. Henrique Baltazar, juiz criminal de Natal, foi direto:
“O principal problema do ITEP é gestão. Tem interesse político por trás, não preocupação com investigação.”
Tradução: o que importa é o cargo, não a justiça.
O País que Não Tem Banco de Dados de Armas
Vamos sair do RN e olhar o Brasil inteiro. Em Minas Gerais, os peritos têm 228 câmeras para registrar cenas de crime. No Amazonas, nove. No Rio Grande do Sul, 14. Em Sergipe, Alagoas, Bahia, Maranhão, Piauí, RJ, RN, Rondônia e Roraima? Zero equipamentos de análise de DNA. Zero. Isso quer dizer que, se um assassino atira em Maceió, foge para Salvador e mata de novo, não dá pra ligar os crimes. Porque não tem banco de dados de balística. Não tem cruzamento de informações. Não tem nada. Paulo Rogério Ferreira, perito em Alagoas — o estado com maior taxa de homicídios do Brasil — conta:
“Trabalho com balística, acidente de trânsito, morte violenta, assalto a banco… qual é minha especialização? Nenhuma.”
Ele nem se sente perito. Só sobrevive. E o orgulho do instituto? Um equipamento moderno de comparação balística. Caro. Sofisticado. Inútil — porque não há base nacional de dados. Sem isso, a máquina vira enfeite. “Se tivéssemos um banco de dados”, diz Paulo, “a gente saberia se aquela arma matou antes. Se aquele projétil apareceu em outro crime. Mas a gente tá no escuro.”
O Brasil é um dos Países Mais Violentos do Mundo
Segundo as Nações Unidas, o Brasil tem 27,1 homicídios por 100 mil habitantes. Entre 95 países, estamos atrás só de El Salvador, Venezuela, Colômbia, Guatemala, Trinidad e Tobago e Ilhas Virgens. O Chile? 2,7. Japão? 0,3. Ou seja: aqui, morrer é normal. E a investigação? Uma piada. O delegado precisa montar provas sólidas pra entregar ao Ministério Público. Só que, sem perícia decente, sem DNA, sem imagem, sem isolamento da cena do crime, não tem prova nenhuma. E sabe por que a cena do crime nunca é isolada? Porque não tem equipe rápida. Não tem carro disponível. Às vezes, o perito demora horas pra chegar. E nesse tempo, a multidão pisa em tudo, leva objetos, espalha lixo. As pistas somem. Um tiro na madrugada. Um corpo no chão. Meia hora depois, já tem gente vendendo pastel ali do lado. E o que sobra? Nada. Só um inquérito aberto. Um suspeito qualquer. Uma acusação fraca. E, no fim, absolvição.
Impunidade é Política
A raiz do problema não é só falta de dinheiro. É falta de vontade política. Porque, sim, tem dinheiro. O governo federal liberou verbas. Estados receberam recursos. Mas o que acontece? O dinheiro some. Vira empreiteira, propina, caixa dois. Ou simplesmente não é aplicado. E enquanto isso, os institutos de perícia viram depósitos de corpos. Os peritos, heróis anônimos com salários baixos e ferramentas de tortura medieval. Os familiares, fantasmas esperando por um nome. E os criminosos? Livres. O sistema brasileiro de segurança é um monstro de três cabeças:
Policiais mal treinados.
Perícia subdimensionada.
Justiça lenta e sobrecarregada.
Mas o ponto fraco? A perícia. Porque é ali que começa tudo. Se falhar no começo, o resto desmorona. E Agora? Tem solução? Tem. Mais concursos públicos para peritos.Investimento em laboratórios de DNA. Criação urgente de um banco nacional de balística. Isolamento obrigatório de cenas de crime com equipes rápidas. Fim do aparelhamento político nos institutos. Tudo isso existe em outros países. Tudo isso funciona. Mas no Brasil, ainda é utopia. Enquanto isso, os baldes continuam cheios. Os corpos, sem nome. As famílias, no escuro. E os assassinos, com 92% de chances de nunca serem pegos.
A Última Cena
Volta lá pro início. Uma noite na periferia de Natal. Tiros. Gritos. Uma multidão se forma. Um corpo no chão. Ninguém isola o local. Ninguém grava. Ninguém coleta. Horas depois, um perito chega. Com sua mala de instrumentos: faca de peixeira, tesoura enferrujada, agulha improvisada. Ele olha em volta. Sabe que não vai encontrar nada. E pensa:
“Mais um caso que vai morrer com a vítima.”
E é exatamente isso que acontece. A impunidade não começa no tribunal. Começa aqui. Neste silêncio. Nesta negligência. Neste balde de lixo com ossos dentro. E o pior? Ninguém se incomoda.