O desaparecimento silencioso dos jegues nordestinos

O desaparecimento silencioso dos jegues nordestinos

A paisagem árida do sertão guarda histórias de resistência e trabalho árduo. Sob o sol escaldante, os jegues, tão presentes no imaginário popular, foram durante séculos a força motriz de pequenas lavouras, transporte e sustento de famílias inteiras. Porém, um novo capítulo dessa saga está sendo escrito – e ele é marcado por um risco alarmante: a extinção desses animais que são verdadeiros símbolos do Nordeste.

Nos últimos anos, uma demanda crescente da China pelo couro dos jegues, matéria-prima essencial para a produção do Ejiao (uma gelatina usada em medicamentos e cosméticos), desencadeou um processo de abate massivo no Brasil. Esse comércio transformou-se rapidamente em um ciclo caótico, no qual os jegues nordestinos, outrora considerados companheiros indispensáveis, passaram a ser vistos apenas como mercadorias. É como se o sertão, em toda a sua vastidão e resiliência, estivesse assistindo à partida de um de seus personagens mais emblemáticos – o jegue, comparado carinhosamente ao “desenvolvimentista do sertão” por Luiz Gonzaga.

O impacto no sertão

A feira de Cansanção, a 350 km de Salvador, ilustra bem essa transformação. Um lugar onde antes se compravam e vendiam jegues robustos para o trabalho agora apresenta cenas de desolação. Agricultores como José Araújo de Souza, com seu chapéu de couro característico, já decretam: “Quem tem o seu que o segure, porque o jegue vai acabar!”. E não se trata de um alarmismo vazio. Apenas nos últimos anos, milhares de jegues desapareceram das paisagens do sertão, levados por uma cadeia de atravessadores até os frigoríficos que abastecem o mercado chinês.

A lógica econômica por trás desse comércio é cruel. Sem regulamentação adequada, muitos animais são capturados na natureza e transportados em condições degradantes. Chegam aos frigoríficos debilitados, e o abate ocorre sem o devido cuidado com o bem-estar animal. A consequência é uma redução drástica na população de jegues, algo que, se continuar nesse ritmo, pode levar ao desaparecimento dessa espécie no Brasil em menos de cinco anos.

Os bastidores de um mercado predatório

O comércio de jegues envolve diversos níveis de intermediários, desde agricultores locais que vendem os animais por preços irrisórios até empresas internacionais que lucram com o couro exportado. No meio desse ciclo, há relatos de irregularidades e maus-tratos que chocam até os mais experientes no setor. Em Itapetinga, no sudoeste baiano, a morte de centenas de jegues em condições lastimáveis despertou indignação. As imagens de animais famintos, caídos ao chão, e até filhotes morrendo por falta de cuidados mínimos, geraram uma onda de protestos e ações judiciais. No entanto, mesmo com algumas interrupções temporárias, o ciclo do abate já está sendo retomado.

A falta de fiscalização rigorosa e de políticas públicas que protejam esses animais alimenta um mercado clandestino, onde as normas são ignoradas. Transporte noturno sem autorização, falsificação de documentos e falta de controle sobre a origem dos animais são apenas alguns dos problemas que tornam essa cadeia produtiva um verdadeiro faroeste. É um sistema onde os jegues, que outrora simbolizavam o trabalho honesto e a resistência do povo nordestino, são tratados como meros itens de comércio.

Por que isso importa?

Além do impacto ambiental e ético, o desaparecimento dos jegues também representa uma perda cultural inestimável. Eles não são apenas animais de carga. São figuras que inspiraram músicas, ditados populares e histórias transmitidas de geração em geração. A relação entre o homem do campo e seu jegue é uma narrativa que fala de parceria, superação e identidade regional. Sem esses animais, o sertão perderia parte de sua alma.

Mas há também questões de saúde pública em jogo. As condições precárias em que os jegues são mantidos antes do abate podem contribuir para a disseminação de doenças, algumas das quais podem afetar seres humanos. O mormo, por exemplo, é uma zoonose que preocupa especialistas, sobretudo diante da ausência de um controle sanitário rigoroso nesse comércio desenfreado.

Um futuro possível

Enquanto o mercado asiático continua a pressionar pela importação de couro e carne de jegue, organizações de proteção animal e acadêmicos defendem alternativas mais sustentáveis. Há iniciativas em andamento para resgatar jegues abandonados, promover o turismo rural com esses animais e até desenvolver programas de terapia assistida, valorizando o jegue como parte essencial da cultura e economia do Nordeste.

Além disso, especialistas em bem-estar animal sugerem a criação de um modelo de produção mais estruturado, com monitoramento, boas práticas e regulamentação clara. Esse caminho não apenas protegeria os jegues da extinção, mas também abriria novas oportunidades econômicas para as comunidades locais, sem comprometer a sobrevivência de uma espécie que há séculos faz parte da vida nordestina.

Conclusão

A história dos jegues no Brasil é uma mistura de resiliência, exploração e esperança. Eles chegaram ao país há mais de 500 anos e tornaram-se ícones do sertão. Hoje, enfrentam um risco que parecia impensável: a extinção, alimentada por um mercado externo que não respeita os limites naturais e culturais. No entanto, ainda há tempo para virar essa página. Proteger os jegues não é apenas uma questão de salvar um animal. É preservar uma parte da identidade nordestina, garantir a saúde pública e buscar um equilíbrio entre tradição e modernidade.

Ao olharmos para o futuro, a pergunta que fica é: como queremos contar a história dos jegues nos próximos séculos? A escolha está em nossas mãos.