Imagine um país onde, de repente, o bife que você sempre encontrava no supermercado desaparece das prateleiras. Parece surreal, né? Mas foi exatamente isso que quase aconteceu nos Estados Unidos em 2020. E não estamos falando só de escassez — estamos falando de uma crise estrutural, provocada por anos e anos de consolidação no mercado de carnes. O bilionário John Tyson, presidente da Tyson Foods Inc., uma das maiores empresas de processamento de carne do mundo, colocou anúncios em jornais nacionais alertando para uma "quebra" na cadeia alimentar. E ele tinha razão... mas também estava omitindo algumas verdades desconfortáveis.
Uma Indústria Consolidada ao Extremo
Se você já se perguntou por que a carne é tão barata nos EUA, a resposta está em dois fatores principais: economia de escala e concentração extrema de poder nas mãos de poucas empresas. A Tyson Foods, junto com seus dois principais rivais — JBS e Cargill Inc. — controla cerca de dois terços da carne bovina americana. E sabe o que é mais impressionante? Grande parte dessa produção sai de apenas algumas dezenas de fábricas gigantescas. Isso mesmo: meia dúzia de plantas fazendo o trabalho de centenas.
Mas aqui vai uma curiosidade: essa história de consolidação não começou ontem. Desde 1967, o número de plantas de abate nos EUA despencou cerca de 70%. E adivinhe quem liderou esse processo? Sim, a própria Tyson Foods. Em seu relatório de 2019, a empresa lista uma aquisição ou fusão para praticamente todos os anos desde 2001. Claro, nem todas foram no setor de carnes ou dentro dos EUA, mas o resultado final é claro: uma indústria dominada por gigantes.
Quando a Pandemia Expos Toda a Fragilidade
Até aqui, tudo bem. As empresas lucravam, os consumidores pagavam pouco pela carne e a máquina seguia funcionando sem grandes problemas. Mas então veio a pandemia de coronavírus, e aí a máscara caiu. Entre surtos nas fábricas e falta de trabalhadores, cerca de 12 plantas de abate fecharam temporariamente nos EUA. O impacto foi brutal: 25% da capacidade de processamento de carne suína e 10% da carne bovina simplesmente sumiram do mapa. Para piorar, os preços começaram a subir.
Christopher Leonard, autor de The Meat Racket , resumiu a situação de forma certeira: "Não temos uma crise de abastecimento agora. Temos uma crise de processamento." O vírus expôs algo que muitos preferiam ignorar: quando você concentra toda a produção em poucas fábricas, qualquer problema nessas instalações pode paralisar o sistema inteiro.
Os Trabalhadores: A Outra Face da Moeda
Agora, vamos falar de quem realmente move essa engrenagem: os trabalhadores. Imagine-se em uma linha de produção, cotovelo a cotovelo com outras pessoas, sem espaço para respirar, quanto mais para praticar distanciamento social. Essa é a realidade diária de milhares de funcionários em frigoríficos americanos. E como se isso não bastasse, muitos desses trabalhadores recebem salários baixos e vivem em condições precárias, às vezes dividindo moradias com várias famílias.
John Tyson tentou tranquilizar o público dizendo que sua empresa estava tomando medidas para proteger os funcionários: medição de temperatura, uso de máscaras, limpeza reforçada e divisórias instaladas nas estações de trabalho. Mas será que isso foi suficiente? Até agora, pelo menos 20 trabalhadores de frigoríficos americanos morreram e mais de 6.500 foram infectados pelo coronavírus. É difícil impedir a propagação de uma doença em ambientes tão apertados, especialmente quando as fábricas continuam operando a todo vapor.
E aqui entra outro ponto importante: quando Trump assinou uma ordem executiva para manter as fábricas abertas, sindicatos e ativistas levantaram a voz. "Esses trabalhadores estão arriscando suas vidas", disseram muitos. "Isso é justo?"
O Que Dizem os Números?
Vamos jogar alguns números aqui para ilustrar melhor o tamanho do problema. Fechar uma única planta de processamento de carne bovina pode significar a perda de mais de 10 milhões de porções de carne em um único dia. Isso não é pouca coisa. E quando você soma os fechamentos de várias fábricas, o impacto no abastecimento nacional é enorme.
Dois senadores americanos, Tammy Baldwin e Josh Hawley, enviaram uma carta à Federal Trade Commission (FTC) pedindo uma investigação sobre possíveis comportamentos anticompetitivos no setor. Eles argumentaram que a alta concentração "minou a estabilidade do suprimento de carne da América e se tornou uma questão de segurança nacional". Pesado, né?
E Agora? Qual é o Futuro?
Então, o que podemos esperar para o futuro? Algumas vozes têm defendido uma mudança radical: sistemas agrícolas e pecuários menores, mais diversificados e regionais. Amanda Claire Starbuck, pesquisadora sênior da Food and Water Watch, afirmou que "precisamos de sistemas alimentares menos consolidados e mais resilientes". Mas há um porém: isso provavelmente aumentaria o preço da carne. E aí vem a pergunta que ninguém quer responder: os americanos estão dispostos a pagar mais para ter um sistema mais seguro e sustentável?
Steve Meyer, economista da Kerns and Associates, foi direto ao ponto: "Há uma obrigação moral de levar alimentos de baixo custo aos consumidores americanos." Ele explicou que as empresas não são assim por acidente ou conspiração — elas atendem à demanda de um público que quer comida barata.
Um Alerta para o Mundo
O problema da consolidação não é exclusivo dos EUA. No Canadá, por exemplo, quase toda a carne bovina vendida em supermercados e exportada pelo país vem de apenas três frigoríficos. Quando uma dessas plantas paralisou, a unidade canadense da McDonald’s teve que começar a importar carne dos EUA. Kevin Kenny, diretor de operações da Decernis, especialista em segurança alimentar global, disse que "espero que os governos dos EUA e do Canadá vejam de perto como as coisas são feitas hoje e como precisamos fazer isso de forma diferente".
Conclusão: Uma Lição Aprendida?
A pandemia de 2020 foi um verdadeiro teste de estresse para a indústria de carnes dos EUA. Ela mostrou que, enquanto a consolidação trouxe eficiência e lucros enormes, também criou fragilidades que podem comprometer o abastecimento de alimentos em momentos críticos. Será que essa crise servirá como um alerta para repensarmos nosso modelo alimentar? Ou continuaremos apostando em sistemas que priorizam o lucro em detrimento da segurança e da sustentabilidade?
Só o tempo dirá. Enquanto isso, a próxima vez que você pegar um bife no supermercado, talvez valha a pena pensar duas vezes sobre o caminho que ele percorreu até chegar ali. Porque, afinal, nem tudo que é barato sai de graça.