Você já ouviu aquela frase: "Saúde não tem preço"? Pois é, mas parece que algumas empresas discordam. No Brasil, onde quase um quarto da população depende de planos de saúde privados, histórias como a de Nínive Loriane Ferreira revelam uma realidade cruel por trás do glamour das propagandas de convênios médicos. Sua trajetória, marcada por dor, perda e injustiça, é apenas uma entre milhares que expõem as falhas de um sistema que deveria proteger, mas muitas vezes agride.
O Caso de Nínive: Um Bebê Perdido e Uma Dívida Imposta
Nínive tinha apenas 19 anos quando descobriu que seria mãe. Apesar da pouca idade, ela já era a responsável financeira pela casa onde morava com sua mãe. Trabalhando na União de Núcleos e Associações de Moradores de Heliópolis (Unas), conseguiu um emprego com carteira assinada e, consequentemente, um plano de saúde empresarial. Contudo, o que parecia ser uma bênção acabou se transformando em um pesadelo.
Com o prazo de carência do convênio inviabilizando o parto coberto pelo plano, Nínive fazia seu pré-natal no SUS. Porém, aos sete meses de gestação, ela começou a sentir dores intensas e desceu de um ônibus próximo ao Hospital Bosque da Saúde. O diagnóstico foi alarmante: era necessário um parto prematuro imediato. Mas havia um problema – o plano negou a autorização para o procedimento.
“Eles disseram que só me internariam se eu assinasse um contrato assumindo a dívida hospitalar”, conta Nínive. Naquela situação desesperadora, com sua bolsa já rompida e a dor insuportável, o pai do bebê assinou o documento em seu lugar. O parto aconteceu às pressas, e o pequeno recém-nascido foi colocado em uma incubadora na UTI do hospital. “Me prometeram que ele ficaria bem”, relembra a jovem mãe.
Mas o pior ainda estava por vir. Três dias depois, Nínive soube que seu filho havia sido transferido para o Hospital das Clínicas sem que ela fosse avisada. “Ele foi tirado da UTI sem oxigênio, sem cuidado nenhum, como fizeram.” Após sete dias de luta, os médicos informaram que o bebê precisava de uma cirurgia urgente devido a uma infecção generalizada. Ele não resistiu.
Ainda em luto, Nínive recebeu outra bomba: um processo do hospital cobrando mais de 10 mil reais pela conta hospitalar. “Eles são os culpados pela morte do meu filho e ainda me processam. Esses convênios tratam a gente que nem lixo.”
Um Problema Estrutural: Judicialização da Saúde Suplementar
Histórias como a de Nínive não são exceções. De acordo com dados do Observatório da Judicialização da Saúde Suplementar da Faculdade de Medicina da USP, em 2017 foram julgadas mais de 30 mil ações contra planos de saúde somente no estado de São Paulo. Esse número representa um aumento de 329% em comparação com 2011, quando houve 7.019 processos.
Os motivos? Negativas de cobertura lideram o ranking (40% dos casos), seguidos por reclamações sobre reajustes abusivos nas mensalidades (24%). Segundo o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), os planos de saúde ocupam o topo das queixas há seis anos consecutivos, com reajustes exorbitantes sendo a principal reclamação.
Outro exemplo chocante é o caso de Giancarlo Morettoni Jr., diagnosticado com mieloma múltiplo, um tipo raro de câncer de medula óssea. Apesar de ter um plano de saúde, ele teve seu contrato cancelado justamente quando precisava realizar um transplante de medula. “Ficamos meses correndo atrás de respostas enquanto meu marido estava entre a vida e a morte”, relata Alexandra Morettoni, esposa de Giancarlo.
Sem alternativa, a família entrou com uma ação judicial. “Se não fosse pelos advogados, meu marido não teria sobrevivido. Os planos conhecem nossos direitos melhor do que nós e sabem como driblá-los muito bem,” desabafa Alexandra.
Por Que Isso Acontece? Dinheiro, Influência e Falhas Regulatórias
Para entender essa bagunça, precisamos olhar para os números. Hoje, mais de 47 milhões de brasileiros dependem de planos de saúde privados, movimentando cerca de 170 bilhões de reais anualmente. Em comparação, o orçamento destinado ao Ministério da Saúde em 2017 foi de 125,3 bilhões de reais – significativamente menor, mesmo atendendo 70% da população.
Esse cenário é alimentado por redes de influência e lobby poderosas. Mário Scheffer, professor da USP e membro da Abrasco, explica que desde a criação da primeira regulamentação para planos de saúde em 1998, o mercado tem manipulado as regras a seu favor. “A legislação é cheia de brechas, e a ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar] tem sido capturada por interesses corporativos,” afirma.
De fato, nomes como Solange Beatriz Palheiro Mendes, ex-diretora da ANS e hoje presidente da Fenasaúde (entidade que representa operadoras de saúde), ilustram o fenômeno conhecido como “porta giratória”. Empresas usam essas conexões para moldar políticas públicas em benefício próprio, deixando os consumidores à mercê de aumentos abusivos e negativas arbitrárias.
Além disso, a PEC do Teto de Gastos aprovada em 2016 limita investimentos públicos em saúde por 20 anos, forçando ainda mais pessoas a buscar alternativas privadas. Enquanto isso, propostas legislativas como o PL que pretende dificultar o acesso à Justiça para usuários de planos de saúde ameaçam tornar a situação ainda pior.
Uma Luz no Fim do Túnel?
Apesar das sombras, há esperança. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os planos de saúde devem ressarcir o SUS quando encaminham pacientes para a rede pública – uma vitória importante após décadas de descumprimento dessa obrigação. Além disso, o Tribunal de Contas da União (TCU) criticou duramente a ANS por permitir aumentos abusivos nas mensalidades, exigindo mudanças urgentes.
Entretanto, especialistas alertam que ainda há muito trabalho a ser feito. Ana Carolina Navarrete, advogada do Idec, enfatiza: “Precisamos ficar atentos a projetos de lei que priorizem os interesses das empresas em detrimento dos consumidores. Se aprovados, eles podem transformar o inferno atual em algo ainda mais insuportável.”
Conclusão: Saúde Não É Mercadoria
Voltando à história de Nínive, fica claro que o sistema de saúde suplementar brasileiro está longe de cumprir sua função. Em vez de oferecer segurança e tranquilidade, muitas vezes ele agrava crises pessoais e familiares, deixando sequelas emocionais e financeiras irreparáveis.
Enquanto isso, a luta continua. Para quem depende desses serviços, resta torcer por regulamentações mais rígidas e agências reguladoras realmente comprometidas com o bem-estar da população. Afinal, saúde não deveria ser um luxo – tampouco um campo minado de armadilhas burocráticas e abusos corporativos.