Dogmas e Mistérios Espirituais

Kali e os Thugs: O Culto dos Estranguladores Indianos

Kali e os Thugs: O Culto dos Estranguladores Indianos

Se você já ouviu a palavra thug em inglês, provavelmente associou-a a alguém violento, agressivo ou fora de controle. Mas sabia que essa expressão moderna tem raízes profundas na história indiana e está ligada a uma das histórias mais sombrias e intrigantes do subcontinente asiático? Os Thugs – ou Thuggee, como eram conhecidos – eram uma fraternidade secreta de assassinos e ladrões que assombraram as estradas da Índia por séculos.

Entre mitos, realidades e manipulações coloniais, a saga desses homens é cheia de mistérios, simbolismos e controvérsias. Neste artigo, vamos explorar quem foram os Thugs, seus métodos macabros, o papel da colonização britânica na construção dessa narrativa e muito mais. Prepare-se para mergulhar em um mundo onde religião, violência e política se entrelaçam de maneira fascinante.

Uma Fraternidade Secreta com Raízes Religiosas?

Imagine viajar pela Índia colonial em busca de novos horizontes, mas, ao invés de encontrar companheiros confiáveis no caminho, cruzar com pessoas que parecem amigáveis à primeira vista, mas escondem intenções mortais. Esse era o cotidiano dos viajantes que cruzavam o território indiano entre os séculos XIII e XIX, quando os Thugs estavam ativos.

A origem dos Thugs ainda é envolta em mistério. Alguns historiadores afirmam que eles surgiram no século XIII, enquanto outros apontam registros mais consistentes apenas a partir do século XVI. O que chama atenção é que esses grupos não eram formados apenas por uma religião específica. Hindus, sikhs e muçulmanos conviviam lado a lado dentro dessas fraternidades secretas, unidos por uma crença peculiar: a devoção à deusa Kali (ou Durga), a deusa da morte e da destruição.

Tugs homens

Para os Thugs, Kali era vista como uma força poderosa que exigia sacrifícios humanos. Eles justificavam seus crimes como parte de um dever sagrado, acreditando que estavam ajudando a deusa a restaurar o equilíbrio do universo ao eliminar "demônios disfarçados" – ou seja, peregrinos que adoravam outros deuses. Essa interpretação distorcida transformava suas vítimas em alvos legítimos aos olhos dos seguidores da seita.

Mas será que tudo isso era verdade? Ou havia algo mais sinistro por trás dessa narrativa?

O Modus Operandi dos Thugs: Estrangulamentos Silenciosos e Roubos Perfeitos

Os Thugs eram mestres da dissimulação. Eles se infiltravam em caravanas de peregrinos ou comerciantes, fingindo ser nativos amigáveis dispostos a ajudar. Com sorrisos calorosos e gestos acolhedores, ganhavam a confiança das vítimas antes de levá-las para locais isolados chamados beles , onde planejavam seus ataques.

O método preferido era o estrangulamento, realizado com um lenço amarelo chamado rumaal . Esse pequeno pedaço de tecido, quase inofensivo à primeira vista, tornava-se uma arma mortal nas mãos dos Thugs. Eles laçavam o pescoço das vítimas com precisão cirúrgica, silenciando-as sem deixar rastros de sangue. Por isso, também eram conhecidos como Phansigars , que significa "estranguladores".

Depois do assassinato, os corpos eram cuidadosamente escondidos. Algumas vezes, eram enterrados em covas rasas escavadas com picaretas consagradas; outras, emparedados em muros para evitar que fossem descobertos. Para garantir que ninguém pudesse identificar as vítimas, os Thugs dançavam sobre as sepulturas improvisadas, compactando a terra e apagando qualquer vestígio.

E não parava por aí. As posses das vítimas eram divididas entre os membros do grupo, enquanto oferendas de açúcar e libações eram feitas à deusa Kali. Era um ritual meticulosamente planejado, que combinava superstição, organização criminosa e crueldade extrema.

Behram: O Assassino Mais Notório da História

Entre os muitos líderes Thugs, um nome se destaca: Behram. Ele foi talvez o mais famoso – ou infame – membro dessa fraternidade secreta. De acordo com relatos contemporâneos, Behram e seu bando teriam matado cerca de 931 pessoas entre 1790 e 1830. No entanto, estudos recentes sugerem que esse número pode ter sido exagerado, estimando-se que ele tenha assassinado "apenas" 125 pessoas. Mesmo assim, trata-se de uma cifra assustadora.

Curiosamente, Behram nunca foi julgado pelos seus crimes. Seu destino permanece incerto, mas sua reputação como mestre do estrangulamento continua viva até hoje. Dizem que ele usava um rumaal especial, decorado com moedas de prata, que tornava seus golpes ainda mais letais.

A Campanha Contra os Thugs: Realidade ou Propaganda?

Foi só no início do século XIX que os britânicos começaram a tomar medidas contra os Thugs. Sob a liderança de William Sleeman, um funcionário civil dedicado, o Império Britânico lançou uma campanha agressiva para erradicar essa ameaça. Em 1835, foi criado o Thuggee and Dacoity Department , um departamento policial exclusivamente voltado para combater os Thugs.

Sleeman adotou táticas inovadoras para capturar esses criminosos. Ele recrutou espiões disfarçados e ofereceu imunidade a Thugs que colaborassem com informações. Milhares de homens foram presos, executados ou banidos das possessões britânicas. Até 1870, acredita-se que o culto dos Thugs havia sido completamente extinto.

Mas aqui surge uma pergunta importante: será que os Thugs realmente existiram da forma como os britânicos os descreveram? Ou eles foram amplificados como parte de uma estratégia para justificar a dominação colonial? Martine van Woerkens, autora do livro The Strangled Traveler: Colonial Imaginings and the Thugs of India , argumenta que grande parte da narrativa sobre os Thugs foi moldada pela "imaginação colonial". Para os britânicos, o desconhecido interior da Índia representava um abismo repleto de superstições e perigos. Ao demonizar os Thugs, eles podiam apresentar a si mesmos como salvadores civilizados, trazendo ordem a um país caótico.

Kali: A Deusa Mal-Entendida

Tugs kali

Embora os Thugs afirmassem adorar Kali, é importante destacar que sua interpretação da deusa era altamente distorcida. Na mitologia hindu tradicional, Kali é reverenciada como uma força protetora que destrói o mal e restaura o equilíbrio. No entanto, os Thugs transformaram-na em uma figura sanguinária que exigia sacrifícios humanos constantes.

Essa distorção reflete não apenas a manipulação ideológica dos próprios Thugs, mas também a forma como figuras religiosas podem ser reinterpretadas para servir a agendas específicas. Não é à toa que Kali continua sendo uma figura ambígua no imaginário popular, tanto reverenciada quanto temida.

Legado dos Thugs: Da História às Telas de Cinema

Hoje, os Thugs são lembrados principalmente como vilões em filmes e livros. Um exemplo notável é o filme Indiana Jones e o Templo da Perdição (1984), que retrata uma seita fictícia inspirada nos Thugs. Embora Hollywood tenha adicionado doses generosas de ficção, essas adaptações ajudam a manter viva a memória dessa fraternidade enigmática.

No entanto, vale a pena refletir sobre como a história dos Thugs foi construída e reconstruída ao longo dos séculos. Ela nos lembra que a verdade histórica nem sempre é clara e que nossas percepções são moldadas por contextos políticos, culturais e sociais.

Conclusão: Entre Lendas e Fatos

Os Thugs são um exemplo fascinante de como mito, violência e política podem se entrelaçar para criar uma narrativa complexa. Seja como assassinos sagrados ou como produtos da imaginação colonial, eles continuam a despertar curiosidade e debate. Sua história serve como um lembrete de que, por trás de cada lenda, há múltiplas versões da verdade, cada uma moldada pelas mãos daqueles que a contam.

Então, da próxima vez que você ouvir a palavra thug , pense nisso: ela carrega consigo séculos de mistério, violência e manipulação. Uma herança sombria que ecoa até os dias de hoje.