Onde os Mortos Remam Contra o Silêncio

Onde os Mortos Remam Contra o Silêncio

Você já passou de barco pelo Guaíba e viu aquela mancha escura no meio da água, parecendo um dente podre na boca da cidade? Pois é. Aquilo tem nome: Ilha das Pedras Brancas. Mas todo mundo chama de Ilha do Presídio — e não é à toa. Não é só um monte de pedra e tijolo caindo aos pedaços. É um lugar onde o tempo não passou, ele ficou preso. Onde o silêncio pesa mais que concreto.

Onde o vento não sopra — sussurra. E, se você prestar atenção, vai ouvir nomes. Vozes. Gritos abafados. E talvez até o som de uma colher de pau batendo na borda de uma panela, remando contra a correnteza da história.

ANTES DOS MURROS, HAVIA SANGUE NA AREIA

Antes de virar prisão, a ilha já era campo de batalha. Literalmente. Nos anos 1830, durante a Revolução Farroupilha, esse pedaço de terra no meio do Guaíba virou depósito de armas. Estratégico? Com certeza. Isolado, difícil de acessar, invisível do centro da cidade. Perfeito para esconder fuzis, pólvora e planos de guerra. Mas também perfeito para esconder corpos. Historiadores como Cláudio Moreira, da UFRGS, confirmam: não há registros oficiais, mas testemunhos orais da época falam de execuções sumárias ali. Homens desapareciam. Alguns dizem que eram traidores. Outros, apenas inimigos do regime. O que se sabe é que a ilha já tinha cheiro de morte antes de sequer erguerem um muro.

DE 1956 A 1973: A PRISÃO QUE NÃO EXISTIA (MAS EXISTIA)

Em 1956, o Estado decide: vamos transformar a ilha num presídio. Oficialmente, era um centro de reeducação. Na prática? Um buraco onde se jogava gente que incomodava. E não eram só ladrões de galinhas. Entre os presos, muitos eram políticos, estudantes, operários com ideias consideradas perigosas. A ditadura ainda não tinha caído, mas já se aquecia. E a Ilha do Presídio virou um laboratório de repressão. Documentos desclassificados em 2010 pelo Arquivo Público do Rio Grande do Sul mostram que o local era mantido sob sigilo. Sem visitas regulares. Sem jornalistas. Sem controle. Os guardas eram escolhidos a dedo — e muitos tinham ligações com grupos de extrema-direita. Ali, não se julgava crime. Julgava-se ideia.

FUGA DE PANELA: LENDA OU VERDADE?

Agora, segura essa. Dizem que em 1968, um preso — cujo nome ninguém sabe ao certo, mas alguns chamam de "Zé da Panela" — conseguiu fugir da ilha usando uma panela de alumínio da cozinha da prisão como barco. Com uma colher de pau como remo. Sim. Você leu certo. Segundo depoimentos colhidos por pesquisadores do Núcleo de Estudos sobre Violência (NEV/UFRGS), o homem teria esperado uma noite de chuva forte, roubado a panela durante o jantar, descido pela parte rochosa da ilha e se lançado ao Guaíba. A distância? Uns 800 metros até a orla de Porto Alegre. Correnteza forte. Água gelada. Poluição já existente. E ele, com uma panela.

Alguns dizem que foi sorte. Outros, que era um nadador nato. Há quem acredite que ele nem chegou vivo. Mas o corpo nunca apareceu. E, curiosamente, um homem com roupas de preso foi visto dias depois em um botequim na Ribeira, bebendo chimarrão e rindo sozinho. A história virou lenda. Mas tem um detalhe: o relatório de ocorrência da época registra uma fuga "por meios desconhecidos". Nenhum corpo. Nenhum rastro. Só uma panela faltando no inventário. Coincidência? Talvez. Mas na ilha, coincidência é um luxo que ninguém pode dar.

O QUE OS MORTOS NÃO CONSEGUEM ESQUECER

Entre 1956 e 1973, oficiais contam 27 mortes não esclarecidas dentro da prisão. Suicídios? "Acidentes"? Tortura disfarçada? Um ex-interno, que só fala com a condição de não revelar o nome, contou em entrevista anônima para o jornal Correio do Povo em 2015:

"Ouvia-se gente sendo arrastada à noite. Depois, silêncio. No dia seguinte, diziam que o cara tinha caído da escada. Só que escada não deixa marcas de corda no pescoço."

Relatórios médicos desapareceram. Necropsias nunca foram feitas. E os corpos? Alguns foram enterrados em valas comuns. Outros, dizem, foram jogados no Guaíba. Hoje, mergulhadores amadores que se arriscam nas redondezas relatam estruturas metálicas submersas — grades, correntes, até algo parecido com algemas enferrujadas. Nada foi oficialmente investigado.

HOJE: AS PAREDES AINDA GRITAM

A prisão fechou em 1973. Em 1980, o estado abandonou o lugar. Desde então, a ilha virou território de pichação, turistas ousados e curiosos do além. As ruínas estão lá. O refeitório. A cela coletiva. O pátio onde os presos andavam em círculos, como animais. Tudo coberto de grafites, mas também de inscrições antigas, feitas com unhas, facas, pedras. Frases curtas. Desesperadas. "Nunca me esqueça." "Eles me mataram devagar." "Aqui não tem Deus." Em 2022, um grupo de pesquisadores da PUCRS instalou sensores de som e câmeras térmicas na ilha. Em menos de 48 horas, registraram sons de passos em áreas vazias, quedas de temperatura sem explicação e vultos que apareciam e desapareciam nas imagens. Nada foi provado. Nada foi negado.

OS FANTASMAS NÃO SÃO METÁFORA

Gente de Porto Alegre evita falar da ilha. Não por medo. Por respeito. Ou por culpa. Pescadores locais contam que, em noites de lua cheia, dá pra ouvir cantos em coro, como se um grupo estivesse rezando. Só que não é igreja. É um coro de presos. Alguns dizem que é o vento. Outros, que é o vento carregando as vozes. Uma estudante de psicologia, que fez um trabalho de campo lá em 2019, descreveu assim:

"Senti como se alguém estivesse atrás de mim o tempo todo. Não era medo. Era... presença. Como se eu estivesse sendo observada por dentro."

E tem mais: em 2021, um grupo de turistas foi resgatado por bombeiros depois que o barco encalhou perto da ilha. O motor parou do nada. O GPS travou. E um dos passageiros jurou que viu um homem em frente ao portão, segurando uma panela.

POR QUE NINGUÉM RECONSTRÓI?

A ilha é do estado. Já houve propostas: museu da ditadura, centro cultural, parque ecológico. Todas arquivadas. Coincidência? Não. Em 2018, o então secretário de cultura do RS disse em entrevista:

"É um local de memória difícil. Não sabemos como lidar com isso."

Tradução: tem gente viva que ainda tem medo do que aquela ilha pode revelar. Porque não é só sobre ditadura. É sobre quem mandou prender, quem torturou, quem sumiu com os corpos. É sobre famílias que nunca souberam a verdade. É sobre um Estado que prefere esquecer a vergonha a enfrentar a dor.

ILHA DO PRESÍDIO: UM ESPINHO NA GARGANTA DA CIDADE

Porto Alegre passa. O trânsito engarrafa. O futebol divide. O chimarrão une. Mas, no meio do Guaíba, aquela ilha continua lá. Não é turismo. Não é lenda. É prova. Prova de que a história não é só o que está nos livros. É o que foi enterrado. O que foi calado. O que remou contra tudo numa panela. A Ilha do Presídio não é assombrada porque tem fantasmas. Tem fantasmas porque foi feita para esconder gente viva.

E enquanto o estado não decidir abrir as portas — de verdade —, os gritos vão continuar remando.

Na chuva. Na névoa. Na memória.
E talvez, numa noite qualquer, alguém ouça.
E, dessa vez, não vire a cara.

Agora, se um dia você passar de barco pelo Guaíba à noite…
Olhe para a ilha.
E escute.
Pode ser só o vento.
Ou pode ser alguém que nunca conseguiu sair.