NAMORADA
Lembro da tua geografia,
cuja chave para abrir
é um beijo sem pudores.
Lembro dos cômoros,
das reentrâncias mais sutis.
No entanto, a lembrança mais viva
é a do suspiro dos teus olhos.
COPO DE ESTRELAS
Guardei todos os recados que recebi
das curvas do caminho,
do acasalamento das folhas com o vento.
Arborizei minhas mãos
com as sementes do olhar,
distribuí os gomos das metáforas que enxertei.
Criei um relógio da lua,
onde os minutos escorrem
uma claridade suave e enamorada.
E, sempre que posso, tomo um copo
de estrelas cadentes diluídas no horizonte.
ÚLTIMO REFÚGIO
O corpo era seu último refúgio.
Cada parte dele onde cabia a angústia,
onde cabia lutar, onde achava
o lugar para fazer-se.
Nas entranhas e panturrilhas,
no cordão umbilical do abraço.
No estômago que enfrentava
o punho da fome.
No braço de erguer uma bandeira,
na voz que a sustentava.
Na raiva engolida, veneno
ou remédio do próprio corpo.
Nas palmas das mãos que aveludavam
as pétalas insinuadas.
No olhar olfativo que
reconhecia ervas ruins.
No cantinho das imaginações.
Nos pés que duvidavam do ir e vir,
na sofreguidão de voltar.
Nos joelhos às vezes tão enfraquecidos
e de dobradiças tão fáceis.
Na vigília sonolenta, no maquinário
de cerrar as pálpebras.
Na oficina de fazer o amanhecer.
Na morada ampla do amor.
Na memória que comparava,
previa ou tinha esquecido.
Era seu corpo, desmedido,
último refúgio, intransponível.
REINICIAR O MUNDO
Não planto amor-perfeito,
cuidando as fases da lua,
esperançoso e paciente
no "quem planta colhe".
Quero mesmo é teus seios
pedindo minha boca,
tua cavalgada de dona,
colher tua cintura,
reiniciar o mundo contigo.
SOMOS SETE
Somos sete irmãos
e temos uma pequena casa
de janelas abertas na residência do peito.
Nossas telhas vão
se enfeitando de algodão,
nosso endereço mútuo
vai sendo demarcado
pelo exercício dos abraços.
Somos sete cultivadores
de portas e nunca deixamos
de colher o sumo do sol nascente.
INFÂNCIA
A bola procurando a esquina do gol,
a gravidade abacateando a calçada,
o carpim grávido de bolitas.
Os vaga-lumes com meio watt
de quase impotência,
um quarto de lua, meio quilo de pão,
um cruzeiro (seria do sul?)
para as guloseimas do armazém.
Um rex para espantar o escuro,
uma Kombi devorando caminhos.
LICENÇA
Não se entra em uma
mulher pela porta.
É necessário abrir
as janelas dos olhos dela,
folhear sua inteligência,
deixar de lado os instrumentos
de abrir caminhos antigos.
Não se entra em uma
mulher pela chaminé,
em manobras natalinas.
É necessário abrir o carinho dela
com o vidro do nosso telhado,
compor a quatro mãos,
desnudar-se de norte.
A RODA DO MUNDO
Eu girava a roda do meu mundo
em acelerada ladeira de mim mesmo.
A infância não tinha gravidade,
apesar de o chão puxar a gente
para o tombo que requeria mertiolate.
Tudo era presente, que desembrulhado,
virou este amanhã em que agora escrevo.
PASSEIO
Encontrou o braço,
subiu a colina do seio, afagou.
Deslizou o pai-de-todos,
descobridor de grutas,
pelo ombro dela.
Chegou na boca como quem,
perdido na noite, reencontra a casa.
Em uma assembleia improvisada
decidiram-se os dedos, após uma
argumentação do anelar,
que não fugia do compromisso,
ir até a região do colo,
entrocamento para toda a geografia.
Ao notarem o arrepio seguiram
até a gruta pré-histórica para colher mel.
ÚLTIMO TREM
Quando um dos nossos embarca
no trem sem levar bagagens,
somente com a passagem de ida,
atira um dormente de breu no peito da gente.
UM POEMA DE AMOR
Após eu colher teus seios
fizeste pra mim um poema
de amor entreaberto:
um pedaço de seda do teu colo,
da coxa, uma chuva que se anuncia.
Tens dedos geográficos,
pequenos animais de arrepio.
O amor está dito, as bocas confirmam.
Ávido, colho agora todas as tuas metáforas.
CRÔNICA DE OUTONO
Não sei distribuir pedras em alicerce,
sequer consigo desenvolver saberes
anteriores ao ferro, tais como fazer fogo,
pescar, engravidar a terra.
Consigo compor mosaicos de vento
e arborizar a infância.
Gosto de regressar, tecer pequenas razões,
carregar ternura na algibeira do corriqueiro.
Nasci numa rua larga, calçada de crianças.
POMAR
Meus amigos e amigas,
sei que a estrada é longa
e que por vezes o sol nos castiga,
mas na bica do horizonte se percebe
água em abundância e sombra.
Lembro quando tudo
era alegria despreocupada
na nossa urbanidade
com fortes traços rurais.
Nos divertíamos plantando
pandorgas para colher ventos,
atirávamos pedra dura na água mole,
enchíamos o papo das galinhas
de grão em grão e era lindo
ver a lua mergulhada numa poça
de água das chuvas passageiras.
Nos bergamoteávamos no inverno
e cada manhã de sol era primavera.
Um muro baixo, um bilhete,
uma janela curiosa, as comadres.
Minhas amigas e amigos,
ainda tenho os bolsos repletos
do pomar que repartíamos.
UM CHAMADO DO TEMPO
O dia já almoçou,
sesteia seus ímpetos agora.
O portão anuncia uma visita,
gente antiga pela demora
em percorrer o corredor.
O musgo do tempo
esverdeou a curiosidade.
Que lentidão, quem chega?
É a tua vó quem chega,
diz o relógio tic-tac-ando
novamente a infância.
A VIDA É A MINHA CASA
Dobrei muitas esquinas nessa vida,
tenho os bolsos abarrotados
destes encontros de ruas.
Agora, quando dobro a esquina da infância
sinto um abraço coletivo do mundo.
Não há dia em que o guri que fui
não esteja me esperando sentado
à beira de uma calçada com o Rex ao lado.
Rindo, um pouco tímido, o guri me pede:
"nunca esqueça de mim!"
INSTANTE ETERNO
Quero tua boca emprestada,
o lume do teu carinho
anoitecendo com luz suave
o instante que será só nosso.
Quero teus olhos, de mel puro,
desabotoando o meu querer,
tuas mãos fazendo mundos.
Quero ainda, numa ambição desmedida,
que nunca esqueças de mim.
O GURI E O CACHORRO
(para Robinho e Rex)
O guri e o cachorro eram
da mesma espécie: curiosos.
Abraçados ou rolando no chão,
eram bons amigos e bastava o silêncio
para se compreenderem mutuamente.
Mais evoluído, o cachorro sempre
perdoava primeiro alguma ofensa.
Mais afeito aos números,
era o guri que contava nas brincadeiras
de esconde-esconde.
Haviam sido quadrúpedes juntos,
mas por curiosidade em saber
o que tinha em cima da mesa
o guri tornara-se bípede.
À noite, ao ouvir o choro do novo bípede,
o cachorro, atento, ralhava com a escuridão.
NAMORADA
O beijo iniciava ao observar
o caminhar dela, seus trejeitos,
sustos, quando tocava no seu ombro.
Era um beijo que já havia sido falado,
doce, delicado, lua e flor.
Olhar no olhar, porta entreaberta.
Rufar de tambores no peito, pernas,
tato, olfato, na imaginação, no afeto.
Posse que não aconteceria,
por se tratar de entrega mútua.