24/10/2016 - Os olhos azuis de Hilda Krüger (1912-1991) veneraram o mais negro dos impérios. Atriz medíocre numa Alemanha bárbara, sua carreira teria caído no esquecimento se não fosse por sua íntima conivência com o Terceiro Reich. Por causa disso, largou o marido judeu e alcançou um papel estelar, muito mais reluzente do que nos filmes que fez, trabalhando para o serviço de espionagem do regime nazista. Foi a adoração a Hitler que levou essa perturbadora artista a tecer nos Estados Unidos e no México uma nutrida rede de conexões com a oligarquia econômica e política, o que eventualmente lhe permitia entregar informações confidenciais relevantes ...
à Abwehr [inteligência militar nazista]. Como espiã, não teve pruridos em usar a sua cama ou qualquer outra para obter sua mercadoria. Loira e curvilínea como uma Valquíria, teve em seus braços personagens como o bilionário Jean Paul Getty e o poderoso ministro mexicano do Interior na época, Miguel Alemán, que depois seria presidente do país. Uma suculenta biografia escrita por Juan Alberto Cedillo (inédita no Brasil) reconstrói o esplendor e a miséria de Krüger, revelando de quebra a intensa, mas quase desconhecida, atividade dos espiões no México da década de 1940.]
Ninguém diria que Krüger estava fadada a ser uma estrela. Não era alta nem possuía o encanto anguloso de divas como Marlene Dietrich. As espeluncas da Berlim do período entre guerras ou a segunda fila do coro de um bom cabaré pareciam ser o seu destino. Mas ela tinha uma cartada mais poderosa na manga: sua íntima relação com o ministro da Propaganda nazista, Joseph Goebbels. Graças a ele, ascendeu e multiplicou suas participações cinematográficas, embora também por causa dele tenha sido obrigada a sair da Alemanha, devido ao ciúme que despertou na mulher de Goebbels, a terrível Magda.
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O adeus à Europa foi o início da sua aventura. Na efervescência de Los Angeles procurou o papel da sua vida. Não encontrou. Mas tampouco se importou muito com isso. Rapidamente se destacou nas festas e coquetéis da metrópole californiana. Simpática e sedutora, sobre ela caíram os olhos vorazes do bilionário petroleiro Jean Paul Getty. Pelo áureo braço do magnata entrou no universo das capas de revista e dos grandes plutocratas, como os Rhodes e os Hastings. Transformada em figura habitual das suas reuniões sociais, começou, com pontualidade germânica, a revelar ao serviço de inteligência tudo o que via. “Hilda se tornou um contato que fornecia informações difíceis de obter fora desses círculos seletos, embora às vezes também as obtivesse nos lugares tradicionais, como cabarés, confessionários e, mais ocasionalmente, a cama”, diz Cedillo em sua obra.
Nesses círculos, a alemã ouviu William Rhodes Davis dizer que, desde 1938, comprava grandes quantidades de petróleo para enviar à Alemanha nazista. E que participavam da operação, através de subsidiárias, Getty e Rockefeller. Foi nesse momento que o México e seu petróleo entraram totalmente no tabuleiro do Terceiro Reich. Em fevereiro de 1941, Hilda Krüger cruzava o rio Bravo rumo à capital mexicana.
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Sua missão, para o Führer, tinha um significado histórico. O regime nazista, obcecado com a ultrassecreta Operação Barbarossa, preparava-se para invadir a União Soviética. Seria a maior mobilização militar da história e o que, depois, marcaria o princípio do fim do poderio alemão. A necessidade de garantir o fornecimento de combustível era vital. O México era um produtor importante. E seu Governo, depois da nacionalização decretada por Lázaro Cárdenas, mantinha distância dos Estados Unidos. Além disso, uma nutrida comunidade simpatizante do nazismo habitava o país e, nas elites, o brilho da uniformidade hitleriana e seu discurso de ferro, causava estragos. Os serviços de espionagem mexicanos eram conscientes dessa efervescência e temiam que, em caso de guerra com o Japão, o conflito pudesse alcançar terras americanas. A quinta coluna alemã começou a ser atentamente vigiada.
A entrada de Krüger na cena mexicana recebeu um duplo apoio. A Abwehr, através de seus contatos, preparou-lhe a aproximação de altos funcionários do Governo do general Manuel Ávila Camacho (1940-1946). E o milionário Getty a apresentou em sociedade. As portas se abriram de par em par. “Foi uma agente nazista, tinha vocação para isso, mas sabia se mover nos círculos intelectuais e escreveu três livros sobre mulheres, La Malinche, Sor Juana e Elisa Lynch”, recorda Cedillo.
Seu primeiro êxito foi seduzir Ramón Beteta, que tinha sido sub-secretário de Relações Exteriores e estava vinculado ao banco central. Com ele perambulou por bares e cabarés, e mergulhou, segundo o livro, no submundo feroz do México dos anos 1940. Em suas horas íntimas, Beteta lhe confessou a admiração que o presidente Ávila Camacho sentia por Hitler e também que a disposição do México de vender petróleo ao Terceiro Reich enfrentava a oposição frontal dos Estados Unidos. Um obstáculo para o qual ofereceu uma solução: que os empresários norte-americanos o comprassem em nome de terceiros e o exportassem para a Europa por intermédio de empresas-fantasma de outros países.
Depois desse primeiro passo, Hilda procurou subir mais um degrau. Desta vez, sua vítima foi o amigo de Beteta, o secretário de Governo, Miguel Alemán Valdés. Descrito no livro como “um macho insaciável”, não foi difícil estabelecer o contato. Alemán enlouqueceu diante daquela perdição loira e deu rédea solta a seus apetites. Em seu frenesi combinava detalhes de dândi (como deixar uma rosa na entrada do quarto da amante ou beber vinho francês somente em finos cristais) com uma selvageria de quarto que o levava a “tratar as mulheres como os proxenetas tratam suas prostitutas”.
Krüger, hitleriana até a medula, suportou a humilhação (mais uma) e com isso conseguiu abrir caminho nos mais altos escalões do Governo mexicano. Como amante do ministro do Interior, pôde relacionar-se com generais e funcionários e fornecer dados estratégicos sobre a produção petroleira e de metais. Esse foi o momento estelar do serviço de espionagem hitleriano no México. Seu ocaso não demoraria a chegar.
Em 8 de dezembro de 1941, depois do ataque japonês ao Pearl Harbour, os Estados Unidos entraram na Segunda Guerra Mundial. As pressões de até então se transformaram em obrigações. Washington, cujos agentes de inteligência não ficaram quietos, exigiu a expulsão dos cabeças da quinta coluna nazista: 22 nomes entre os quais figurava Hilda Krüger. O presidente Ávila Camacho aprovou sua detenção. Foram caindo um após o outro. Hilda se livrou por um último favor de seu amante.
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O golpe foi fim como espiã. O México se distanciou para sempre da Alemanha hitlerista. E a vida, embora em um mundo em chamas, seguiu seu curso. Miguel Alemán se tornou presidente em 1946, e seu amigo Beteta, ministro da Fazenda. A atriz tentou refazer sua carreira com alguns filmes no México e contraiu matrimônio com o dandy Nacho da Torre, aparentado com a família do ex-presidente Porfirio Díaz. Divorciou-se e casou-se novamente. Nada deu certo. Deixou o México e, em 1958, tentou retomar sua carreira na Suíça com outro filme. Mas, sem os apoios de antigamente, não teve sucesso. A passo lento foi-se apagando até cair no esquecimento. Ninguém jamais a condenou e só retornou ao México uma vez para descobrir que nada era como antes. Em 8 de maio de 1991 morreu em Lichtenfels (Baviera). Sua memória é agora parte da história da infâmia.
Fonte: https://brasil.elpais.com