Por Carlos I.S. Azambuja, 03/02/2005 - “Em vez de comandar uma coluna guerrilheira, o grande sonho de minha vida, vou ter que comandar uma coluna de carros oficiais em Brasília”. (José Dirceu, por ocasião de um Seminário do PT dias 15 e 16 de abril de 1989).
Durante 13 anos (1961-1974), aproximadamente 300 militantes da luta armada no Brasil receberam treinamento de guerrilha em Cuba e na China (em números redondos, 250 em Cuba e 50 na China). Os que sobreviveram foram anistiados e estão sendo recompensados financeiramente. Recompensados por terem sido derrotados na luta para instaurar no Brasil uma democracia popular, seqüestrando, matando, assaltando e “justiçando” alguns de seus próprios companheiros e até militares estrangeiros, como o Major do Exército da então Alemanha Ocidental, Edward Von Westernhagen, em 1 de julho de 1968, no Rio, o Capitão do Exército norte-americano Charles Rodney Chandler, em São Paulo, em 12 de outubro de 1968, e o Marinheiro inglês David Cuthberg, no Rio, em 5 de fevereiro de 1972.
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Os dois primeiros, observem, antes da assinatura do Ato Institucional nº 5. Isso é um paradoxo! Militantes das Ligas Camponesas, ainda antes de 1964, e do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), em 1965 e 1966 e mais tarde, até 1974, da Ação Libertadora Nacional (ALN) – organização na qual os cubanos mais apostavam -, da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8) e do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) receberam treinamento de guerrilha em Cuba. E militantes do Partido Comunista do Brasil (PC do B) e da Ação Popular (AP), freqüentaram a Academia Militar de Pequim nos anos de 1965 e 1966. É interessante e altamente instrutivo conhecer a opinião de alguns militantes treinados em Cuba:
Maria Augusta Carneiro Ribeiro (“Natacha”, “Márcia”, “Renata”, “Sofia”), militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), que integrou o grupo de banidos em setembro de 1969, em troca da liberdade do embaixador dos EUA no Brasil, seqüestrado no Rio de Janeiro pelo MR8, conta que 20 dias depois de os banidos chegarem ao México, veio o convite, através de enviados do governo cubano, para treinarem em Cuba, quando, então, assumiriam um compromisso com Fidel Castro: “Faríamos toda a propaganda anti-americana que ele queria e em troca, ele nos daria apoio para treinar, viver lá e voltar” (livro “Exílio: entre Raízes e Radares”, de Denise Rolemberg, 1999).
Em Havana, os militantes recebiam pseudônimos, documentos e eram instalados em aparelhos. Embora tivessem liberdade de circular pela cidade, não eram estimulados a entrar em contato com a população, segundo as orientações recebidas, por questões de segurança. Os militares cubanos os agruparam em turmas de aproximadamente 12 pessoas, de acordo com a organização a que pertenciam. Primeiro, era ministrado um Curso de Explosivos com um mês de duração, em um quartel na província de Havana, onde passavam a semana. Aí, aprendiam fórmulas, a montagem e a desmontagem de explosivos. Em seguida, iniciavam o Curso de Tiro ao Alvo e de Manipulação de Pistolas e Fuzis, que consistia em montá-los e desmontá-los com os olhos abertos e, depois, fechados.
Por fim, as turmas eram conduzidas para o interior do país, onde passavam cerca de 8 meses, no treinamento propriamente dito de guerrilha rural. Os militares cubanos cuidavam da preparação física dos militantes, davam aulas de tática e de cartografia, simulavam emboscadas, promoviam marchas e exercícios de tiro e de sobrevivência na mata. Embora isso fosse levado muito a sério pelos integrantes de todas as organizações, as condições de treinamento que, supostamente, os colocariam no ambiente e nas situações de uma guerra de guerrilha foram considerados decepcionantes e despertaram críticas de vários militantes:
“Nós fomos para lá acreditando que íamos encontrar um treinamento que nos desse as condições próximas às que teríamos na guerrilha rural no Brasil. Mas nada disso ocorreu. Nós ficamos num barracão de madeira, onde havia uma cama para cada um; uma coisa rudimentar, mas havia. As refeições eram todas servidas por caminhões do Exército. Até para tomar banho tinha um cano… era um acampamento! Nós protestamos contra isso. Tentamos ganhar os cubanos para o fato de que nós queríamos dormir no mato todos os dias, por mais que isso fosse terrível. Porque aquilo ali era uma brincadeira. O próprio Zé Dirceu dizia que o treinamento era um teatrinho de guerrilha e o pior, um vestibular para o cemitério” (Daniel Aarão Reis, “Exílio, Entre Raízes e Radares. Denise Rolemberg, 1999).
Embora bem-intencionados, os instrutores eram primários do ponto de vista teórico e político. Longe da realidade que encontrariam na guerrilha, até as marchas eram feitas em trilhas. Apenas uma vez foi realizado um exercício com a duração de 24 horas, procurando se aproximar das condições reais: a chamada marcha da sobrevivência. Na ocasião, deixava-se o acampamento com as mochilas vazias e era preciso comer frutas, caçar, pegar água nos riachos, dormir ao relento:
“Esse dia foi realmente terrível. Se a gente tivesse feito todo o treinamento nessa base, de duas uma: ou a gente não teria agüentado ou teria realmente adquirido uma certa familiaridade com aspectos sérios de uma guerrilha rural”. (Daniel Aarão Reis, “Exílio: Entre Raízes e Radares”). Militantes do MR8 acabaram convencendo a direção de que o treinamento era dispensável, decidindo que os banidos que haviam chegado ao Chile em janeiro de 1971 não o fariam, causando-lhes enorme decepção. “
A gente achava que não valia a pena, que era perda de tempo e consolidou a linha de que o treinamento sério seria montar sítios no Brasil, onde as pessoas ficariam 6 meses de mão na enxada (…) Aquele treinamento, na melhor das hipóteses, dava uma visão crítica do foquismo cubano; na pior, dava a ilusão de que você sabia fazer a guerrilha rural”. (Daniel Aarão Reis, “Exílio…”). Mas nem todas as organizações brasileiras interpretaram dessa forma a experiência. Prevalecia uma mitificação de Cuba, que as levava a assumir uma atitude subserviente e acrítica em relação aos militares cubanos. Valorizando o treinamento, os militantes valorizavam a si mesmos e a organização à qual pertenciam.
Para os brasileiros, em geral, originários da classe média urbana, que sequer haviam servido o Exército, o treinamento representou um enorme esforço, mesmo levando em conta sua artificialidade. Poucos conseguiam se sair bem dos exercícios e suportar o desgaste físico: “Me lembro que teve um exercício de derrubar árvores com um machado. Nos primeiros 50 golpes que eu dei brotaram logo bolhas enormes em minhas mãos”, conta Daniel Aarão Reis. Vera Silvia Araújo Magalhães fala do treinamento como “um esforço dilacerante, uma barra-pesada psicológica, e uma tensão que tornava a vida um tormento”. Maria Augusta Carneiro Ribeiro encarava esses exercícios como “um pesadelo e uma exaustão física permanente, um horror, um sofrimento”. (livro “Exílio…”).
Ao final do treinamento os militantes saiam do país com documentos preparados em Cuba ou na Argélia ou então, conseguidos por simpatizantes na Europa, ou seja, roubados em festas ou onde fosse possível. No horizonte, entrar no Brasil e dar continuidade à luta. A maior parte desses guerrilheiros treinados em Cuba e que conseguiram voltar, morreram em combates de rua. Os Órgãos de Inteligência possuíam informações sobre essas pessoas, conseguidas através dos depoimentos dos que eram presos ou fornecidas por aqueles que decidiram mudar de lado. O caso mais conhecido foi o do “Grupo Primavera”, ou “Molipo”, ou “Grupo dos 28”, saído da ALN, que foi dizimado, restando apenas quatro sobreviventes, entre os quais José Dirceu, que embora tenha sido aquinhoado pelos cubanos, com o grau de “comandante” (“Comandante Daniel”), regressou ao Brasil clandestinamente, com outro nome e homiziou-se numa cidade no Sul do país, não tendo participado de nenhum combate de rua, como fizeram seus companheiros mortos.
O testemunho de Maria Augusta Carneiro Ribeiro dá uma idéia do que significava, naquele contexto, a possibilidade da morte: o fato de pertencer a uma organização de vanguarda dava um sentido à vida e ao futuro e “não importava se esse futuro era morrer”. Achava que morreria ao voltar o que não a afastava desse objetivo: Segundo ela, “não era uma coisa prazerosa, mas muito lógica. Queria viver, mas era mais importante o papel que estavam me dando. Eu aceitava e achava que era correto”. Além disso, sentia-se em dívida com a Organização, por ter sido libertada através de uma ação de seqüestro.
Antes de regressar ao Brasil, Maria Augusta submeteu-se a uma cirurgia dentária, na Itália, objetivando mudar a fisionomia a fim de dificultar sua identificação no Brasil. No atual governo, foi nomeada para o cargo de “Ouvidora da Petrobrás”.
A ineficiência do treinamento oferecido pelos cubanos foi evidente, até mesmo para militantes completamente envolvidos pelo projeto da guerrilha. Talvez sua função fosse menos a de preparar guerrilheiros para uma luta, onde as condições e os recursos do inimigo eram tão desiguais mas, como interpretou Vera Silvia Araújo de Magalhães, a de compor “uma mitificação dos militantes, com uma verdadeira identificação a super-heróis”. Correspondia, portanto, à idealização do guerrilheiro voluntarista, cuja disposição seria capaz de mudar o mundo. Neste sentido, talvez o treinamento fosse justificado mas, talvez por isso tornou-se, na realidade, “um estímulo a um delírio” e “um vestibular para o cemitério”.
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No caso dos militantes do MR8, eles partiam de Cuba para a Argélia em uma rota que passava pela Checoslováquia e por Moscou. Depois de um certo tempo na Argélia, onde a organização possuía uma base, iriam para o Chile e daí para o Brasil. No entanto, nos primeiros anos da década de 70, antes de chegarem ao Chile a situação já havia mudado consideravelmente: as organizações haviam sido desmanteladas pela chamada repressão e, em Santiago, a deposição de Allende anunciava um outro momento.
Nesse sentido, a próxima estação não seria o Brasil, mas o mundo.
José Anselmo dos Santos (cabo Anselmo”, Augusto”, ”Daniel”, ”Paulo”, ”Renato”, ”Sergio”), em documento por ele próprio redigido, diz ter viajado para Cuba, com outros cinco ex-marinheiros, em 1967, onde receberam treinamento de guerrilha urbana e rural. Todos ficaram em Cuba até fins de 1970.
“Nos cursos de treinamento para atuar como guerrilheiro urbano, além do manuseio de armas curtas, é feito um ensaio permanente para criar hábitos de segurança no local de habitação, nos movimentos diários, em casa e na rua, e mesmo nos momentos de vigília.
Esconderijos disfarçados nas paredes, nos pisos e nos móveis para conter documentos ou objetos comprometedores. Sinais nas fechaduras, portas da casa, portas de armários, malas, gavetas, para indicar se durante a ausência algum terceiro havia penetrado, visto ou aberto. Em alguns casos, os locais de habitação ou esconderijos domésticos devem estar minados com artefatos explosivos ou incendiários, de tal maneira que se um terceiro abre uma porta ou mala, fecha um circuito que alimenta uma explosão.
Para estar seguro, um indivíduo na clandestinidade deve desconfiar dos mais insignificantes acontecimentos que não possa explicar na sua vida de relacionamento com outras pessoas. Deve desconfiar de qualquer referência à polícia ou à política. Deve desconfiar de qualquer comentário relativo ao terrorismo. Deve desconfiar de qualquer pessoa que faça perguntas, sejam elas de que tipo for, até mesmo a informação mais banal. Para movimentar-se na rua deve, antes, certificar-se se, à saída de casa, se não está sendo seguido. Para tanto, existem regras: nunca deve tomar o primeiro coletivo e deve fazer uma série de verificações, voltas, checagens e contra-checagens antes de chegar ao local de destino. E com maior cuidado ainda deve proceder quando da volta para casa.
Se vai a um cinema, o que não é aconselhável, deve escolher um assento depois de bem estudar as saídas, a fim de escapar em caso de perseguição.
No local de residência essa medida começa no momento da escolha. Pelo menos os 500 metros de circunferência devem estar bem estudados; os quintais, as ruas, as vielas, as janelas e até mesmo os cachorros.
O dia-a-dia é uma tensão constante. Insuportável, pelo cálculo frio que exige uma situação permanente de fuga. As três regras que os instrutores cubanos aconselham: desconfiança constante; vigilância constante; movimentação constante, no caso de uma guerrilha rural. No caso da cidade, nunca viver mais de 3 meses num único local, e passar os dias vagando, “conhecendo o terreno”. Na impossibilidade de uma vida legal, considerando a estrutura social como “inimigo que deve ser destruído a qualquer custo”, qualquer notícia de caráter oficial tem o peso de uma bofetada. Qualquer notícia ligada à Segurança Nacional vale como uma pressão psicológica e os cuidados se redobram. A amizade e o afeto são perigos que devem ser constantemente combatidos. A beleza deve ser desprezada, a moral social combatida e desvirtuada, e os hábitos de diversão pequeno-burgueses, execrados”. Prossegue o “Cabo” Anselmo:
“Em Pinar del Rio, o grupo composto por seis ex-marinheiros nicaraguenses, peruanos, equatorianos e portugueses, passamos a receber treinamento, ler e discutir o livro de Regis Debray “Revolução na Revolução”, cujas páginas abriam uma divergência de grandes proporções no Movimento Comunista Internacional, já que, sem grande profundidade de análise, Debray negava violentamente os principais dogmas leninistas e maoístas. Os velhos comunistas que se autodenominavam marxistas-leninistas não podiam ser dirigentes, vanguardas, em qualquer país latino-americano, uma vez que, habituados nas cidades, não serviam para as selvas e montanhas. Ademais, não era necessária para um guerrilheiro uma perfeita educação marxista-leninista.
Segundo Mao-Tsetung, o Partido deveria dirigir o fuzil. Para os professores cubanos, o grupo guerrilheiro já era o Partido, substituindo as velhas estruturas burocráticas dos partidos comunistas tradicionais, seguidores da URSS e da China. Aprendemos a montar e desmontar fuzis soviéticos e outros. Cada aprendiz disparou milhares de tiros com fuzis, metralhadoras, bazukas de fabricação norte-americana, chinesa, soviética, canhões, revólveres e pistolas. Foi-nos ensinado como montar bombas agressivas e incendiárias. Aprendemos a fazer cálculos para colocar cargas explosivas para destruir pontes, esburacar rodovias, tombar árvores, partir trilhos de ferrovias ou fazer um veículo voar pelos ares. Entramos em intimidade com uma série de recursos e dispositivos da indústria militar e outros de preparação rudimentar provocadores de explosões manuais, elétricas ou retardadas. Conhecemos que a sabotagem urbana, com o objetivo de desorganizar, atrasar e fazer entrar em colapso a produção e a economia, pode assumir variedades incríveis: congestionamento de trânsito provocado; explosão de tanques de gasolina dos autos e conseqüente incêndio de maneira rápida e fácil; rompimento premeditado de aparelhos telefônicos públicos e outros veículos de utilidade pública; depredação de instalações nos locais de diversão pública; paralisação no fornecimento de energia elétrica e outras variedades, todas visando a insatisfação, o mal-estar público, criando assim um clima favorável ao proselitismo e à crítica orientada para a desmoralização dos responsáveis pela máquina administrativa.
Outra sistemática utilizada como arma para criar pânico e também para testar dispositivos de segurança são os telefonemas anônimos anunciando bombas colocadas em aviões, locais públicos, embaixadas e consulados, repartições. Mesmo que tais bombas não existam, mobilizam-se corpos policiais, bombeiros e desviam-se pessoas de suas atividades rotineiras num estado psicológico de medo. E se os trabalhadores nas indústrias e serviços, os administradores de empresas internacionais, o pessoal do serviço público, chega a sentir-se inseguro para o cumprimento de suas tarefas, a desmobilização da administração nacional é conseqüente.
Aprende-se a colocar minas no terreno e a escolher locais e distribuir os homens para uma emboscada, cada um com sua tarefa específica. O restante do tempo divide-se em aprender noções de orientação, balística, cálculo de distâncias, distinção de sons noturnos, segurança e guarda nos acampamentos, construção de depósitos de suprimentos e munição, defesa pessoal e táticas de guerrilhas”.
Carlos Eugênio Sarmento Coelho da Paz (“Clemente”, “Quelé”, “Guilherme”), o último dos comandantes da Ação Libertadora Nacional (assumiu após a morte de Joaquim Câmara Ferreira (“Toledo”, morto em São Paulo em 23 de outubro de 1970). Participou de assaltos, assassinatos e do justiçamento de um companheiro. Nesse
justiçamento, o de Marcio Leite Toledo, ele integrou o Tribunal Revolucionário que o condenou e foi um dos que cumpriram a sentença, integrando o grupo que assassinou o companheiro, na rua Caçapava, em São Paulo, em 23 de março de 1971.
A respeito desse episódio recordamos a definição de “Inimigo de Classe” dada por Jorge Semprum (prisioneiro, por 2 anos, do campo de concentração nazista de Buchenwald, de onde foi libertado ao final da guerra; foi expulso do Comitê Central do Partido Comunista Espanhol em 1965 por defender uma linha reformista; de 1988 a 1991 foi ministro da Cultura da Espanha; autor de vários livros): “Não é, de fato, somente quando um comunista se torna agente do ‘inimigo de classe’ que seus camaradas decidem expulsá-lo ou até mesmo executá-lo. É também quando ele se torna agente de si mesmo, ator e não mais somente instrumento da razão-do-partido, do espírito-do-partido. É quando ele decide tornar-se o indivíduo singular, um ser bastante louco, bastante irrresponsável por querer marcar a história do movimento comunista com sua iniciativa pessoal. Mas ele só marcará essa história com o exemplo de sua punição exemplar, com a iniciativa da aceitação, abjeta e ao mesmo tempo gloriosa, dessa punição, em benefício da honra histórica da revolução”. (livro A Montanha Branca”).
Nesse sentido, Marcio Leite Toledo tornou-se agente de si mesmo e foi executado em benefício da honra histórica da revolução.
Em dezembro de 1972, “Clemente” abandonou seus comandados e fugiu para o Chile. E daí, no ano seguinte, para Cuba.
Em seu livro “Nas Trilhas da ALN”, editora Bertrand Brasil, 1997, “Clemente” traça um quadro contundente dos cursos a que eram submetidos os latino-americanos na ilha da liberdade:
“A interferência deles (dos cubanos) já nos custaram caro demais; a volta dos companheiros do MLP (MOLIPO) sem nossa autorização foi um desastre, 18 mortos e mais tantos presos… e tudo por uma rasteira política de infiltração, querendo influenciar nosso movimento de dentro, para adequar nossa política às necessidades deles. (…) Entendo que militantes nossos, afastados da realidade brasileira e querendo voltar para lutar, questionem a Coordenação Nacional, fundem uma corrente ou saiam da Organização, mas os cubanos não tinham o direito de autorizar a saída deles do país sem nos comunicar, quando havia meios para isso. Cederam os esquemas, promoveram a volta e ajudaram a convencer combatentes que tinham dúvidas. Chegaram a São Paulo procurando militantes queimados, usando esquemas já abandonados por falta de segurança, aparelhos que não mais existiam, despreparados e desinformados dos avanços da repressão. Achavam que não autorizávamos suas voltas para não perdermos o comando da Organização. Infelizmente, sentiram na pele que estávamos cercados, fazendo ações de sobrevivência, assaltando bancos e supermercados na véspera do vencimento de aluguéis, e tentando não desaparecer. (…) O que me revolta é que caíram como moscas, e hoje ninguém assume suas responsabilidades (fls 78 e 79).
No curso de Estado-Maior, em Cuba, esmiúço a história da revolução cubana e constato evidentes contradições entre o real e a versão divulgada América Latina afora (…) Muitas ilusões foram estimuladas em nossa juventude pelo mito do punhado de barbudos que, graças ao domínio de táticas guerrilheiras e à vontade inquebrantável de seus líderes, tomou o poder numa ilha localizada a noventa milhas náuticas de Miami. Balelas, falsificações (…) O poder socialista instituiu a censura, impediu a livre circulação de idéias e impôs a versão oficial. Os textos encontrados sobre a revolução cubana são meros panfletos de propaganda ou relatos factuais, carentes de honestidade e aprofundamento teórico (…).
A ameaça iminente de agressões facilitou a militarização do país. Milícias Populares e Comitês de Defesa da Revolução formam uma teia considerável que abastecem o S2 de informações sobre posições políticas, atitudes sociais e escolhas sexuais dos cidadãos (…) O Partido Comunista é o único permitido, e em seus postos importantes reinam os combatentes de Sierra Maestra ou gente de sua confiança, em detrimento dos quadros oriundos do movimento operário e do extinto Partido Socialista Popular, representante em Cuba do Movimento Comunista Internacional e aliado da União Soviética.
Os contatos com as organizações de luta armada são feitos através do S2, conseqüência esperada das deturpações do regime. A revolução na América Latina não seria uma questão política e sim, usando as palavras do caricato “Totem” (NOTA: codinome atribuído ao general Arnaldo Uchoa, comandante do Exército em Havana em 1973. “
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Totem” lutou na Venezuela e Angola e esteve no Chile durante o governo Allende. No final dos anos 80 foi condenado à morte e fuzilado, sob a acusação de envolvimento com o narcotráfico), “de mandar bala”. Nos relacionamos com agentes secretos (…) Eles tentam influenciar na escolha de nossos comandantes, fortalecem uns companheiros em detrimento de outros; isolam alguns para criar uma situação de dependência psicológica que facilite a aproximação; influenciam o recrutamento; alimentam melhor os que aderem à sua linha e fornecem informações da Organização; concedem status que vão desde a localização e qualidade da moradia à presença em palanques nos atos oficiais; não respeitam nossas questões políticas e desconsideram nosso direito à autodeterminação (…) “ Fabiano” (referência a Carlos Marighela) negociou com os cubanos de igual para igual, mas “Diogo” (referência a Joaquim Câmara Ferreira) concedeu demais. Sentiu-se enfraquecido pelas quedas em São Paulo que culminaram na morte do nosso líder, e permitiu algumas ingerências nas escolhas de quadros para a volta e os postos que ocupariam na Organização.
No Brasil, recebemos com espanto a volta de um comandante indicado pelos cubanos e aceito por Diogo. O episódio não chegou a ter maiores conseqüências, pois o comandante desertou no caminho e foi morar na Europa” (fls 178 a 181). (referência ao “ comandante Raul”, Washington Adalberto Mastrocinque Martins, escalado pelos cubanos para ser o comandante da Coluna guerrilheira, na Área Estratégica, no Bico do Papagaio, que desertou no caminho de volta ao Brasil e viveu na Europa até a Anistia). Depois de meses de reuniões de autocrítica, entre “Clemente” e o que restava da ALN, em Cuba, ainda fazendo cursos, todos decidiram, por unanimidade, abandonar a luta armada. Muitos voltaram ao partido do qual haviam saído, o PCB e outros, como “Clemente”, optaram por abandonar a luta armada. A montanha de mortos fora em vão. (*)Carlos I. S. Azambuja é historiador.
por Editoria MSM | 3 de fevereiro de 2004