Por Ana Raquel Portugal, historiadora - Espanhóis na terra dos Filhos do Sol - Quando Francisco Pizarro chegou a Tumbez, em 1532, o Tahuantinsuyu estava dividido pela disputa dos dois irmãos, Huascar e Atahualpa, pela mascapaicha21. O Inca Huayna Capac havia ido guerrear no norte do território incaico e aí morreu vítima de uma epidemia de varíola e sarampo. Huascar era considerado o melhor candidato a substituir seu pai, visto que ele era filho do Inca com a coya, esposa principal. A gravidade dessa situação estava ligada aos princípios básicos de organização social do povo inca, que se estruturava em torno do ayllu. Ao contrário do que ocorria nos ayllus22 comuns, em que o sistema era patrilinear e exogâmico, ...
entre as panacas ou ayllus reais23, a linha de descendência era matrilinear e endogâmica. Porém, apesar da aparente desvantagem de Atahualpa, ele tinha direito a disputar o poder, pois também era filho do Inca. Depois de alguns confrontos com seu irmão, Atahualpa terminou por vencê-lo.
Atahualpa encontrava-se em Cajamarca quando Pizarro chegou e o aprisionou. A conquista do povo inca se deu de modo aparentemente fácil, pois estes não ofereceram resistência, já que não foram atacados. A falta de coesão diante do perigo, a insatisfação de alguns chefes étnicos em relação ao Estado, como vimos, e a debilidade diante do armamento espanhol foram alguns dos fatores que propiciaram a sua derrota.
Depois da conquista inicial, começam a aparecer os primeiros documentos que descrevem não só os feitos dos espanhóis, mas também as organizações das etnias encontradas no que hoje conhecemos por Peru. O século XVI é extremamente complexo de ser analisado, pois como afirma Luis Millones, esse período é o mais importante da história americana24, por terem acontecido grandes mudanças. Atualmente, podemos contar com grande quantidade de documentos publicados, como crônicas, visitas, litígios, que em sua maioria são parte de artigos ou teses de etno-historiadores.
Esses documentos são uma fonte valiosa de informação, tanto etnográfica como histórica sobre os povos andinos dos períodos pré-hispânico e colonial. É necessário, no entanto, realizar-se uma interpretação crítica dos mesmos, visto que representam a percepção tida por espanhóis a respeito do mundo andino. Comparando-os com escritos indígenas, poderemos perceber que existem diversas contradições por parte de tais autores.
Os espanhóis, por exemplo, transformaram o sistema político numa monarquia e sabemos que no mundo incaico o governo era dual, existindo dois Incas e dois curacas26. A sucessão incaica, ao contrário do que escreveram tais cronistas, não era via filho legítimo e primogênito como na Europa do século XVI, e sim, pelo ‘mais hábil’27. Outro exemplo da dificuldade em se analisar esses documentos está no conceito de ‘pobreza’. Para os espanhóis, ‘pobre’ eram os velhos e aleijados que não tiveram acesso a bens, enquanto que, no mundo andino, ‘pobres’ eram os incapacitados de trabalhar temporariamente ou indefinidamente.
Os documentos escritos por indígenas, em sua maioria do século XVII, continham descrições de seu mundo baseados em critérios europeus, visto que passaram por um processo de ‘aculturação’. Nathan Wachtel, que analisou profundamente esse tema, explica que a ‘aculturação’ designa todos os fenômenos de ação recíproca que resultam do contato entre duas culturas de força desigual, uma dominante e outra dominada29. No caso andino, não houve a passagem da cultura indígena à cultura ocidental, e sim, o processo inverso, em que a cultura indígena integra os elementos europeus. Como os incas estavam acostumados a aproveitaram o sistema preexistente para controlar a mão-de-obra. Para isso, contavam com a ajuda de chefes locais, que mantinham como antes, a ligação entre senhores e súditos. Foi essa administração indireta que favoreceu a manutenção das tradições indígenas, apesar da ação espanhola em sentido contrário através da evangelização e das reduções30, que, em verdade, desde o momento inicial da conquista, eram um instrumento para justificar suas pretensões políticas31. Os documentos indígenas são resultantes dessa mescla, em que por um lado é visível a influência dessa ‘aculturação’, pois os cronistas retratam sua realidade com visão ocidentalizada, mas, por outro, fazem uma apologia ao mundo andino.
No que concerne à religião, os documentos que nos chegam são também uma reprodução de lógicas mentais da velha Europa no Novo Mundo32, por isso, foram transportados para os Andes o diabo e a sua aliada, a bruxa. O mundo andino não conhecia a noção do mal encarnado em uma figura satânica, e sim, uma visão dialética em que o bem e o mal são complementares. Percebe-se que houve uma aculturação desses conceitos, quando por exemplo, os hapiñunos, que seriam fantasmas ou duendes, são posteriormente representados como forças diabólicas derrotadas por Santo Tomás, conforme os relatos de Pachacuti Yamqui33, um indígena aculturado.
Os cronistas espanhóis, ao associarem a religião indígena a cultos demoníacos, fizeram com que, quando da instalação da extirpação de idolatrias, as mulheres fossem particularmente perseguidas e acusadas de praticarem feitiçaria, como haviam sido pela Inquisição européia. Os ditos feiticeiros, homens ou mulheres, eram vistos pelos espanhóis como perniciosos à colonização, pois ao revitalizarem antigas crenças, incitavam a resistência ao sistema colonial.
Tais relatos originam-se da confluência de discursos representativos de culturas distintas. A utensilagem mental34 do espanhol só lhe permitia reproduzir aquilo que via de acordo com seus próprios traços culturais. O indígena, que passou por um processo de aculturação, não apagou de sua memória a própria cultura, apenas passou a filtrá-la de acordo com os modelos europeus. Ao analisarmos documentos do século XVI e XVII, que tratam a história andina desde o período da conquista até à época das campanhas de extirpações de idolatrias, estamos lidando com um conjunto de informações que são a representação desse mundo indígena, aos olhos de europeus, mestiços e autóctones impregnados de traços culturais espanhóis. Podemos considerar que os textos resultantes dessa confluência cultural representam uma nova realidade, que acabará por ser assimilada e sociabilizada.
Os primeiros religiosos em terras incaicas
Os primeiros grupos de conquistadores que chegaram aos Andes traziam religiosos, os quais mal se diferenciavam dos civis presentes em tais expedições, pois o motivo que os trazia a essas terras era semelhante. Tanto civis, quanto religiosos, ambicionavam enriquecer, sendo este o primeiro motivo do fracasso da evangelização. Lockhart menciona que estes estavam interessados em obter ganhos econômicos e, para tanto, participavam em combates, preferindo guerrear a propagar a fé. Os sacerdotes seculares tinham menos regalias que os regulares, ganhavam pouco e, por vezes, transformavam-se em sacerdotes-empresários, ávidos por riquezas e que logo retornavam à Espanha.
Os frades pertencentes a Ordens religiosas chegavam em condições distintas, visto que estavam respaldados por suas Congregações, cuja matriz ficava na Espanha. Vinham com tarefas estabelecidas e locais pré-determinados para se fixarem e desenvolver as suas missões. Os que estiveram presentes no momento da conquista, como os mercedários e os dominicanos, receberam encomiendas, subsidiadas pelo Estado, mas nem todas contaram com esse apoio. Os dominicanos, os franciscanos e os agostinianos eram os responsáveis pela evangelização e recebiam essa ajuda estatal, ao contrário dos mercedários, que apenas ganharam encomiendas por haverem participado das expedições iniciais de conquista.
Esses ditos religiosos “soldados”, continuaram participando em combates, como as Guerras Civis ocorridas entre almagristas e pizarristas. Muitos foram aqueles que serviram de espiões e correio em tais conflitos e acabaram tendo um fim trágico, sendo condenados e enforcados. Outros desempenharam importantes papéis de mediadores nessas lutas e também na conquista a nível militar e político, pois, enquanto a alta hierarquia tratava de organizar as batalhas, os menores lutavam no campo. Esse espírito de conquistadores, resultou em pouca ou nenhuma atividade de cristianização nos momentos seguintes à conquista espanhola37. No século XVI, Hernando de Santillan reitera essa idéia, quando comunica preocupado que os índios em tempos incaicos eram bons trabalhadores e não se excediam em nada, pois seus vícios eram castigados. Porém, depois que tiveram contato com os sacerdotes, nem prosseguiram com sua lei, nem aprenderam a dos espanhóis, visto que viram os maus exemplos daqueles que lhes predicavam o Evangelho, afastando-se da possibilidade de terem em seu coração a doutrina e os ensinamentos da santa fé.
Contudo, a conversão dos índios não era uma tarefa fácil, pois a dificuldade da comunicação também acarretava sérios problemas na propagação das mensagens dos sacerdotes, visto serem estas radicalmente estranhas às tradições religiosas indígenas. A utilização que esses espanhóis fizeram do trabalho indígena fez com que estes se convertessem em inimigos da predicação, pois associavam a imagem de trabalho com a da fé. As fortes obsessões econômicas desses sacerdotes instalados desde o princípio na América, representou um sério inconveniente à evangelização.
Nos momentos posteriores a essa crise, houve a necessidade de impor a cultura européia, começando a destruição de ídolos e o combate aos rituais indígenas. Tudo aquilo que os doutrineiros não compreenderam ou não quiseram compreender interpretaram como sendo feitiços ou arte mágica e decidiram queimar e destruir tudo40. Isso ocorreu devido à pouca preparação desses religiosos e à sua formação inicial. A Igreja na América teve a seu serviço homens, que foram criados por suas famílias numa cultura guerreira, visto serem provenientes de um lugar onde ocorreram as lutas pela Reconquista contra os mouros.
A perseguição a “hereges” no período inicial da cristianização andina, tinha por objetivo combater aqueles que se opusessem ao desígnio “divino”, do rei de Espanha, sobre os territórios encontrados. Dessa forma, estavam travando uma “guerra santa”, como a das Cruzadas, em que defendiam uma causa civil cuja meta final seria religiosa.
A má formação dos primeiros clérigos, que não conseguiram destinguir deuses importantes dos de caráter puramente idolátrico e que colocaram interesses pessoais acima dos da Igreja, prejudicaram o processo inicial de evangelização nos Andes.
A extirpação de idolatrias: segunda evangelização
Depois do fracasso inicial, passou-se à erradicação das idolatrias, com o objetivo de preparar o povo local para a evangelização, ambas as estratégias tinham por fim a cristianização dos indígenas. Devido à crença medieval, tudo o que era pagão na América foi considerado obra do diabo, passando-se a realizar a “caça às bruxas” e criando-se um
verdadeiro choque ideológico em que a cosmologia indígena foi deturpada para atender às necessidades dos extirpadores de idolatrias.
Esse domínio cultural, segundo Wachtel, significou a desestruturação do mundo andino, pois a extirpação de idolatrias era o mesmo que uma deculturação. Porém, a cristianização não reestruturou a sociedade indígena, que, devido ao choque com as estruturas mentais completamente diferentes das suas, viu no cristianismo uma variedade de idolatria, enquanto seus deuses eram considerados demônios pelos espanhóis.
O povo inca não ofereceu resistência aos deuses cristãos, pois conforme suas próprias crenças religiosas, se os espanhóis haviam vencido, era porque seus deuses os haviam ajudado e nada mais natural do que respeitá-los. Porém, isso não significou uma conversão ao cristianismo e depois do fracasso da primeira evangelização, que usou de persuasão e repressão, teve início a extirpação de idolatrias, propriamente dita. Esta era diferente da extirpação do período da conquista, em que o objetivo era saquear riquezas dos templos dos demônios.
Obras, como o Manual dos Inquisidores44 e o Malleus Maleficarum45, serviram para fundamentar os Concílios de Lima46, que eram os regulamentos de combate às heresias indígenas. O Manual também conhecido por Directorium inquisitorum, descrevia as categorias de heréticos a serem reconciliados ou “relaxados ao braço secular”, quando necessário fosse. Os autores de Malleus atribuíram às mulheres as artes maléficas, visto serem estas marcadas pelo pecado original de Eva e mais fracas diante das tentações do demônio. Essa obra tratou em detalhes a maneira demoníaca como as bruxas agiam e como era possível identificá-las, servindo de guia para os inquisidores e aconselhando-os para que não aceitassem o arrependimento como motivo para não condená-las à fogueira, visto serem elas perniciosas à cristandade.
Nos três Concílios de Lima, datados respectivamente de 1551, 1567 e 1568, foram tratados os principais objetivos da extirpação de idolatrias e a forma como deveriam ser castigados aqueles que fossem acusados de idólatras. Chamou-se a atenção, para que fossem perseguidos com mais intensidade os feiticeiros e dogmatizadores, devendo estes ser submetidos aos mais severos castigos, inclusive a pena de morte.
No início da campanha de extirpação, houve disputas entre o clero regular, que tinha uma postura indigenista favorável a uma evangelização por persuasão e não pela violência47 e o clero secular, favorável às extirpações. Nesse período, criou-se o cargo de Juiz Visitador, com o intuito não só de extirpar a religião andina, mas também de liquidar os doutrinadores regulares, submetendo-os ao seu poder e acusando-os de explorarem a população indígena e de não conhecerem as línguas vernáculas, o que dificultava a predicação.
Prova disso são as Visitas feitas com o objetivo de inventariar os bens das Igrejas de cada povoado e de averiguar se os padres estavam desempenhando suas funções de instruir e evangelizar os índios. Quando chegava a uma aldeia, o Juiz Visitador interrogava a testemunhas locais sobre as atividades do cura do povoado. Perguntava se todos haviam sido batizados pelo dito cura, se este lhes tomava a confissão, se atendia com esmero aos enfermos e se não explorava o trabalho indígena, pagando pelos serviços prestados por estes. O dito padre não poderia ter mulher, nem dentro, nem fora de casa, e deveria tratar a todos como seus filhos, ensinando-lhes a doutrina cristã e predicando-lhes e explicando todos os domingos e em dias de festa o Santo Evangelho.
De 1610 a 1660, a extirpação de idolatrias teve seu período de maior atividade, e apesar dos confrontos entre o clero regular e o clero secular, a partir de 1610, a Companhia de Jesus conseguiu empreender sua campanha de cristianização. Seguindo uma política missioneira relativa à zona andina, conforme foi tratada por José de Acosta49 e usando critérios indigenistas e coletivistas, os jesuítas conseguiram alcançar a elite indígena através do Colegio del Príncipe, em Lima, onde os filhos de curacas eram educados. Para além disso, criaram a prisão para feiticeiros, a Casa de Santa Cruz, com a finalidade de suprimir a elite de sacerdotes da religião indígena. A Companhia praticamente dominou religiosa e culturalmente o território peruano nesse período.
A Inquisição inicial queria tão somente acabar com as heresias de indivíduos já integrados à cultura hispânica, enquanto a Extirpação, segundo Pierre Duviols, era a filha bastarda da inquisição, instalada em Lima em 1571 e da evangelização, pois tinha por projeto a destruição das religiões andinas.
As campanhas de extirpação de idolatrias, conforme Antonio Acosta, tornaram-se mais vorazes no século XVII, nas regiões próximas a Lima. Isso se deu, em virtude do grande número de conflitos entre índios e doutrinadores, devido à ganância econômica destes últimos. Esse fato pode ser explicado, entre outros motivos, pela chegada a Lima de vários bispos e arcebispos ligados à Inquisição européia. Um deles foi Bartolomé Lobo Guerrero, que tinha larga experiência inquisitorial e foi quem apoiou o primeiro grande Juiz Visitador do Peru, o doutrinador Francisco de Ávila , na denúncia promovida por este contra os índios da região de Huarochiri51. A extirpação de idolatrias serviu em casos como esse, para acabar com conflitos judiciais entre índios e religiosos.
Foram muitos os processos contra religiosos, que eram acusados de cometer excessos e agravos contra os índios, pois lhes pediam dízimos pelos mortos e faziam-nos trabalhar em suas chácaras sem pagamento algum. Num processo movido pelos índios do povoado de Santiago de Carampona, Francisco de Galarca foi acusado, não só das questões acima relatadas, mas de ser culpado pela morte de uma índia, a qual foi obrigada por este a mudar-se do povoado. Francisco de Galarca defende-se argumentando que tal mulher havia morrido em função de uma surra que levara do marido, que estava bêbado. Ele estaria sendo sim, vítima de uma vingança por haver descoberto “ciertas guacas e ydolatrias y superstriciones del demonio y de sus antepasados”52. Essa era uma forma inteligente de escapar à condenação por exploração e assassinato.
A tentativa de ocidentalização da América se deu através da evangelização e da extirpação de idolatrias54. Quando os visitadores chegavam às aldeias, era realizada uma festa de recepção nos moldes dos cerimoniais romanos, onde trombetas eram tocadas e o Visitador entrava na Igreja em procissão e chegando ao altar maior, ajoelhava-se sobre uma almofada e fazia as primeiras preces, sendo-lhe estas retribuídas pelo pároco local55. Tal pompa, fazia parte da teatralização necessária à repressão inquisitorial, que, após tais cenas, começava os interrogatórios, as pesquisas, as confissões e a destruição dos santuários indígenas. Diante de tal aparato, não era difícil conseguir confissões de pessoas que diziam ter ligação com o diabo, pois essa noção européia acabou por mesclar-se com as estruturas simbólicas indígenas.
Houve nesse período um processo de aculturação56 da população indígena, por parte dos visitadores, e por isso, as “bruxas” e “bruxos” mais perseguidos eram os dogmatizadores, visto serem os que promoviam uma contra-evangelização57.
Na sociedade andina havia conhecedores de ervas, soldadores de ossos e os curandeiros, mas, como na Europa dizia-se que esse tipo de conhecimento só era concedido aos seguidores do diabo, a idolatria, o curandeirismo e a bruxaria acabaram sendo confundidos, sendo esta última, uma invenção hispânica.
Por meio de tortura, os visitadores conseguiam as evidências que necessitavam para condenar o acusado, assim um grande número de curandeiros confessaram ter recebido seus conhecimentos de ervas através de pactos demoníacos.
Os deuses andinos estavam perdendo a força diante das adversidades coloniais, estavam se calando e, conforme Todorov, é necessário ter o domínio dos signos para que se possa manter o poder59. O papel dos bruxos e bruxas-dogmatizadoras60 nas comunidades, era de suma importância para a manutenção da sabedoria e rituais indígenas, pois simbolizava a resistência ao sistema colonial.
Houve também um grande número de mulheres acusadas de serem bruxas, como podemos comprovar através da Relación de la visita de extirpación de idolatrías de Cristóbal de Albornoz61. Apesar de os espanhóis associarem a figura do chefe local, o curaca, à de feiticeiro, por ser o responsável pela manutenção da tradição indígena, muitas foram as mulheres acusadas de feitiçaria62, tendo sido a maioria condenada a serviços perpétuos para Igreja, podendo levar-nos também à suposição de que essa seria uma forma de escravizar mão-de-obra indígena.
Na obra de José de Arriaga, aparece um exemplo de aculturação de rituais indígenas extremamente significativo, que é quando este descreve a ação de feiticeiros que constituíam sociedades secretas e que atuavam quando os outros dormiam, entrando nas casas e sugando um pouco do sangue da pessoa a quem queriam matar e depois levavam esse sangue ao grupo, que o cozinhava e comia. Alguns dias depois, a pessoa de quem retiraram o sangue, morria. Adoravam o demônio, que aparecia em forma de leão ou tigre, mantinham relações homo e heterossexuais durante as festas e depois todos beijavam-lhe o traseiro64. Essa, nada mais é, que uma descrição da comunhão diabólica do sabá65, ou seja, através de comportamentos ritualísticos andinos, Arriaga sugere o sabá, o que leva a crer que os bruxos andinos tenham sido bastante atormentados pelos inquisidores para que estes conseguissem tais relatos.
A explanação acima reitera a afirmação de Irene Silverblatt, sobre ser a bruxaria andina uma invenção espanhola. O processo de aculturação permitiu que as estruturas indígenas fossem adaptadas às necessidades inquisitoriais, mostrando mais uma vez ter sido fundamental o papel das “bruxas” andinas , e para nós, também o dos “bruxos”, na manutenção das crenças indígenas66.
Na maioria dos casos, a extirpação de idolatrias usou métodos de tortura, como açoites, a tosa de cabelo ou ter de andar nu em cima de uma llama. O acusado poderia ter seus bens confiscados, ser condenado a trabalho provisório ou definitivo para a Igreja, como já mencionamos, ou até mesmo, à pena de morte. Na Espanha, ser condenado a andar nu era considerado humilhante, mas entre os índios não tinha a mesma conotação, visto serem esses solidários contra a Igreja conquistadora. Já a tosquia de cabelos, significava uma perda imensurável, pois estes tinham valor de distinção entre os diversos ayllus e os extirpadores tinham consciência disso. O confisco de bens entre uma população que vivia comunitariamente era um fato trágico, pois significava o empobrecimento de toda a comunidade.
Durante os autos-de-fé, eram queimados ídolos e, por vezes, os “mallqui” (múmias de antepassados). Os índios não aceitavam que os corpos fossem enterrados, devido a suas convicções religiosas de haver vida após a morte, por isso, sempre que podiam, resgatavam os corpos de familiares enterrados no cemitério da Igreja. Os inquisidores, revoltados, mandavam queimar os cadáveres, porque, na concepção cristã, estavam condenando-os ao inferno. Ao fazerem isso, estavam na verdade acabando com as raízes deste culto, ou seja, matando aquela cultura através de seus mortos.
Demônios, bruxos e resistência
Os religiosos necessitaram da ajuda de indígenas intérpretes na propagação da fé cristã e devido às dificuldades em utilizar as terminologias próprias do cristianismo, surgiram as primeiras heresias nos Andes, que eram o resultado de uma mescla da cosmovisão indígena com as noções religiosas européias.
As idolatrias possuíram desde o início elementos católicos, visto que os espanhóis construíram suas Igrejas com os restos de santuários indígenas e colocaram cruzes, aonde antes os índios íam levar oferendas, fazendo com que estes prosseguissem cultuando tais locais, não porque os sacerdotes os ensinavam a adorar a casa de Deus e a Cruz, na qual seu Filho morrera, mas porque aquelas pedras que ora serviam de paredes ou bases a templos e símbolos católicos continuavam sendo seus locais sagrados.
A demonização de deuses andinos foi a forma que os sacerdotes encontraram de interpretar o desconhecido e fazer com que os indígenas se afastassem dessas crenças, incutindo neles noções como a do pecado. Os sacerdotes fizeram com que estes acreditassem que, por sempre terem sido idólatras, viviam agora dias de desgraça, submissos ao domínio espanhol. Longe de estar ligada a uma noção de culpa pela transgressão religiosa, os índios associaram o peso da destruição de sua cultura com a idéia de pecado e sua angústia não se resolvia mediante a confissão.
Nos documentos dos séculos XVI e XVII, aparecem as representações desse mundo multifacetado, em que figuras do bem foram convertidas em seres diabólicos, indivíduos que conheciam o efeito medicinal das ervas, eram tidos por feiticeiros e sacerdotes eram convertidos em bruxos.
Cristóbal de Molina descreveu em sua crônica como funcionavam as huacas e os templos onde o demônio dava respostas aos feiticeiros, mediante sacrifícios de animais, plantas, alimentos e outras coisas, que eram realizados ao longo do ano em festividades diversas.
Os grandes extirpadores de idolatrias, Francisco de Ávila, Hernando de Avendaño e Jose de Arriaga70, foram os que mais propagaram esse discurso demonológico nos Andes. Seus discursos influenciaram cronistas indígenas, como Garcilaso de la Vega71, Guaman Poma de Ayala72 e sobretudo, Joan de Santa Cruz Pachacuti73, visto que sua Relación pode ser definida como um instrumento de conquista espiritual do passado, ou seja, de conquista e colonização do passado andino. Seu discurso reflete uma visão aculturada, pois rejeita seu passado cultural e mental em troca de um outro passado importado.
Essa aparente vitória do cristianismo, se dissolve nas próprias idolatrias, que nada mais eram, como vimos, do que um conjunto de elementos católicos mesclados a características religiosas indígenas. Daí o aparecimento de movimentos nativistas de resistência, portadores da idéia de transformar a sociedade, amparando-se em elementos pré-hispânicos. As idolatrias, como tais, deveriam ser então descartadas como o cristianismo, para dar lugar à verdadeira religião dos tempos incaicos. A idolatria constituiu a resposta do indígena ao processo de evangelização levado a cabo pelos espanhóis dos séculos XVI e XVII.
Algumas considerações
No período inicial de colonização, os religiosos queriam apenas conquistar e enriquecer, devido ao seu espírito guerreiro. A primeira evangelização fracassou, não só pela incompreensão dos signos indígenas por parte dos espanhóis, mas também porque o objetivo das primeiras campanhas de extirpação era saquear os povoados.
Foram muitos os abusos cometidos pelos padres contra a população indígena, e para contê-los, foi necessário iniciarem-se as Visitas de Idolatrias, que, além de extirparem a religião indígena, tinham a função de controlar a ação de tais clérigos. Na verdade a Visita é uma junção da Extirpação com a Inquisição, pois a coroa opunha-se a aplicar o Santo Ofício aos indígenas, criando-se essa instituição análoga e paralela, que tomaria sob a sua jurisdição o caso dos índios idólatras.
Como na Europa a luta contra a heresia nos Andes teve fins políticos, pois a população que queria escapar aos rigores da Inquisição, como os que expusemos, era forçada a entrar nas reduções, onde era evangelizada e controlada politicamente, facilitando a cobrança de tributo. No caso das mulheres, especificamente, a perseguição foi expressiva, não só por serem as “bruxas” as companheiras do diabo, conforme a mentalidade européia da época, mas porque estas eram temidas pelos espanhóis e seus aliados indígenas, por representarem a resistência ao mundo colonial, visto que tinham grande poder dentro de suas comunidades, participando de reuniões importantes do povoado e sendo inclusive temidas pelos curacas. Eram as detentoras da sabedoria e rituais indígenas e utilizavam esses conhecimentos para destruir o desequilíbrio provocado em seu mundo pelo domínio espanhol.
Quando os espanhóis fizeram uso das antigas estruturas indígenas, como o ayllu, com fins econômicos, eles lucraram com a intermediação do curaca em relação à população local, mas propiciaram também a manutenção das tradições culturais e religiosas indígenas. Por isso, curacas, sacerdotes, curandeiros, adivinhos, homens ou mulheres, todos foram equiparados a demônios, quando os espanhóis perceberam sua função revitalizadora das crenças pré-hispânicas.
Acreditamos que a conquista espanhola não tenha significado a destruição do mundo andino, e sim, sua transformação. Nas fronteiras discursivas76, em que a visão espanhola e indígena se encontraram, novas práticas culturais foram forjadas. Fronteiras são simbólicas e construídas pela necessidade de diferenciação entre grupos que se reconhecem entre si77, através de traços culturais representados em sinais, símbolos e discursos, por isso, quando culturas diferentes interagem, essas fronteiras rompem-se parcialmente, permitindo o surgimento de representações culturais híbridas78 ou mesmo, mestiças79. A bruxaria andina, é portanto, resultado de tais confluências culturais, em que a visão demoníaca do espanhol interpenetrou os rituais indígenas, gerando novas superstições.
Inquisição: tortura e morte às mulheres
O filme Sombras de Goya (Goya’s Ghosts, 2006) conta a história do pintor Francisco Goya dentro do contexto da Inquisição Espanhola.
A “Santa” Inquisição
A Inquisição, chamada inclusive de “santa inquisição” pela igreja católica, foi o instrumento de tortura utilizado pelo clero da idade média para manter o poder em uma época em que a burguesia crescia de forma ameaçadora, e para coibir a força da recém surgida Reforma Protestante.
A Inquisição Espanhola, retratada no filme, foi o braço mais cruel desse período genocida da igreja católica. Foi na Espanha de fins do século XV que se destacou Tomás de Torquemada, um padre, cuja crueldade não deixou nada a desejar para os carrascos nazistas.
Manual de Tortura
Foi idéia da própria igreja católica criar um manual explicativo de técnicas de tortura, o Malleus Maleficarum (ou Martelo das Feiticeiras). Parte dessas torturas - as mais brandas, diga-se de passagem - são mostradas no filme.
A técnica era torturar uma pessoa até arrancar-lhe a “verdade”. Confessada a ligação com o diabo, a igreja estava autorizada (por ela mesma) a confiscar dinheiro, bens e terras; a perseguir os parentes da(o) herege; e a condená-lo(a) à morte na fogueira. Clique aqui para saber mais sobre vários outros métodos de tortura e morte.
Liberdade, Igualdade e Fraternidade
Chamou-me muito a atenção no filme a incoerência entre o discurso e a prática das instituições humanas. Essa incoerência se aplica primeiramente à igreja, mas não só a essa. Os ideais da Revolução Francesa, que pregavam valores semelhantes, operava pelas mesmas ferramentas de tortura, assassinato e genocídio, como retrata o filme.
Perseguição às Mulheres
Embora judeus, muçulmanos, homossexuais, homens e até crianças tenham sido torturados pela Iquisição, as mulheres foram o grande alvo da igreja católica. Vale ressaltar aqui que os padres já eram, ou pelo menos se diziam ser, celibatários; e que a sessão de tortura era realizada com a mulher quase sempre despida. É desnecessário dizer que, diante de tantas torturas, o estupro realizado pelos padres inquisidores era uma delas, como retrata o filme.
E o pintor Goya, que ficou surdo e quase cego, retrata essas atrocidades nas suas gravuras esfumaçadas, nas suas pinturas realistas.
A tortura na Santa Inquisição
A prática da tortura para obter a confissão do réu, habitual nos processos civis da época, foi repelida de início pelos papas, que chegaram a encarcerar alguns inquisidores por sua crueldade.
Em 1252, no entanto, o Papa Inocêncio IV autorizou o uso da tortura quando se duvidasse da veracidade da declaração dos acusados.
A aplicação da tortura não foi uniforme em todos os tribunais de Inquisição, variando de um para outro país ou cidade.
Regra geral, porém, a tortura começava quando os hereges eram jogados em masmorras imundas, onde passavam meses e até anos confinados sem o direito de qualquer comunicação com seus familiares.
Muitos morriam na prisão. Escreveu Alcides que "às vezes [o herege] era colocado ao lado de um louco para que fosse atormentado ainda mais, porque, por incrível que pareça, era do regulamento da Inquisição que se maltratasse o prisioneiro ao máximo para extrair dele também o máximo".
A Igreja Católica na Espanha empregava regularmente a tortura para conseguir confissões completas, e, em 1480, o Papa Sisto IV deu aprovação aos processos inquisitórios e teve o apoio de Torquemada.
Este, em 1483, aprovou o emprego de torturas. Tem-se notícias de que a Inquisição espanhola empregava 14 modalidades diferentes de suplícios.
Os principais instrumentos de tortura eram:
01. Cadeira inquisitória - essas cadeiras continham até 1.600 pontas afiadas de ferro ou madeira, sobre as quais as vítimas, completamente nuas, se sentavam para serem interrogadas.
Às vezes, para aumentar o sofrimento do réu, o assento de ferro era aquecido.
02. Esmaga joelhos, polegares e mãos - três instrumentos distintos com funções específicas, como o próprio nome indica. Uma espécie de prensa para esmagar as ditas partes do corpo.
03. Esmaga seios - era o instrumento preferido no século XV para torturar as mulheres acusadas de bruxaria. O seio era envolvido por um ferro retangular, bastante aquecido. Mediante bruscos movimentos circulares, os seios eram esmagados.
04. Despertador - uma dos mais terríveis instrumentos de tortura. Era uma espécie de cavalete de madeira ou de ferro, com um vértice pontiagudo. Puxados por cordas ligadas a roldanas, os hereges eram suspensos até certa altura; depois, num lance rápido, eram lançados sobre o despertador, de tal forma que o ânus e partes sexuais tocassem a ponta da pirâmide.
De acordo com a calibragem da queda, o torturado tinha as partes íntimas rebentadas, tais como testículos, vagina e cóccix.
05. Roda de despedaçamento - esse tipo de tortura consistia em colocar o réu de costas sobre uma roda de ferro, sob a qual colocavam brasas. Em seguida, a roda era girada lentamente.
A vítima morria depois de longas horas de dor, com queimaduras do mais alto grau. Não havia pressa para a morte do supliciado. Antes, havia o cuidado de prolongar ao máximo a sua agonia.
Numa outra versão, a roda era usada para dilacerar o corpo dos condenados. Neste caso, em lugar de brasas, colocavam instrumentos pontiagudos sob a roda.
06. Mesa de evisceração - um dos mais cruéis instrumentos de suplício. Destinava-se a extrair aos poucos, mecanicamente, as vísceras dos condenados.
Após a abertura da região abdominal, as vísceras, uma por uma, eram puxadas por pequenos ganchos presos a uma roldana, girada por um carrasco.
07. Pêndulo - usado para deslocamento de ombros e como preparativo para outros tipos de tortura. A vítima era levantada por cordas presas aos pulsos e depois bruscamente solta e segurada novamente antes do corpo chegar ao solo.
08. Cavalete - usado na Inquisição portuguesa, consistia em deitar a vítima de costas sobre uma espécie de mesa, com material cortante, e, através de um funil colocado na boca, encher seu estômago de água. Depois, o carrasco pulava em cima da barriga do réu, forçando a saída do líquido. A operação era repetida até a morte.
09. A virgem de ferro ou virgem de nuremberg - instrumento oco com o tamanho e a forma de uma mulher, dentro do qual as vítimas, uma de cada vez, eram colocadas.
Facas eram arrumadas de tal maneira e sob tal pressão que o acusado recebia um abraço mortal. Cuidava-se de que regiões letais não fossem atingidas para proporcionar uma morte lenta.
10. Manjedoura - uma longa caixa onde o acusado era deitado de costas, e amarrado pelas mãos e pés. O suplício consistia em esticar o corpo do herege até obter o desmembramento das juntas.
Muitos outros instrumentos de tortura da Idade Média foram usados pelos inquisidores: hereges eram serrados ao meio, mutilados aos poucos, amarrados por longo período em troncos de madeira, colocados em posições dolorosas e inusitadas para causar cãibras e esfolados vivos.
Nas execuções usava-se muito o fogo brando, a partir dos pés untados com óleo.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Inquisi%C3%A7%C3%A3o_espanhola
AVENTURAS NA HISTÓRIA
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