História e Cultura

Saberes milenares: o peso da herança indígena na sociedade brasileira

indig topoO português que veio ao Brasil era um lavrador desvinculado de suas raízes. Deixara na aldeia europeia seus campos de cultura e seus rebanhos, a família e a comunidade, cujo consenso lhe pautava a vida. Nenhuma lealdade o ligava à nova terra. Vivia como um estranho junto a um povo com que não se identificava e diante do qual não se sentia moralmente obrigado, senão quando compelido por uma força externa, como a Igreja ou o Estado. A distância cultural que separava o colonizador do habitante nativo era imensa. No Brasil não encontrou nenhum dos frutos que conhecia, nenhum animal doméstico a que estava habituado. As técnicas de cultivo da terra a que estava afeito não se aplicavam à floresta tropical.

A superioridade numérica do índio em relação aos minguados contingentes que vinham nas caravelas era avassaladora. Assim, apesar de toda a sua potência guerreira e técnica, os colonialistas tiveram de aprender com eles a viver nos trópicos, a cultivar seus frutos, a comer suas raízes e paulatinamente a criar nichos que começaram a atuar sobre os índios em torno. A esse processo de chamou a tupinização do português no Brasil, por ser a etnia Tupi a prevalecente no litoral, à época da descoberta.

Meio século depois, já se tinham formado na costa alguns núcleos de população que representavam uma primeira combinação, ainda que desordenada, de uma cultura europeia com uma cultura tribal. Na concepção de Darcy Ribeiro, seriam a “protocélula da etnia brasileira”, que conformariam o que se chama hoje “a cultura rústica brasileira”.

As aldeias da costa, que serviam de feitorias para dirigir o comércio do pau-brasil, tiravam sua subsistência por métodos antes desconhecidos ao europeu, falavam uma língua indígena, o Tupi, e viam o mundo com olhos diversos. Estes núcleos que se uniram primeiro pelo mar, como se fossem ilhas, depois por terra, é que viriam a constituir o Brasil. Já continham os traços essenciais que caracterizariam o perfil do povo brasileiro: não eram europeus e não eram índios. Aquelas protocélulas tinham a solução de sobrevivência do europeu no trópico: produziam um produto de exportação, o pau-brasil, que lhes garantiria as mercadorias europeias de que necessitavam e da própria terra retiravam as fontes de subsistência.

Já nessa fase, o índio era compelido, cada vez mais, a servir como mão de obra escrava à sociedade de cujos ideais não participava. Até que se tornou obstáculo, porque reteve terras que eram cobiçadas, porque sua hostilidade punha em perigo a vida do invasor e porque a necessidade crescente do escravo e do guerreiro levava o colono a um depoimento cada vez mais exacerbado. A inadaptação do índio ao regime de vida e de trabalho do engenho canavieiro obrigou ao afluxo do escravo negro, dando nova dimensão às “protocélulas” iniciais. Segundo Darcy Ribeiro:

“Os conformadores fundamentais destes núcleos foram a escravidão, como forma de contingenciamento da mão de obra e o sistema de fazendas, em que cada novo núcleo foi estruturado.”

A história do Brasil será daí por diante a aventura desses núcleos pioneiros da Bahia, de Pernambuco, do Rio de Janeiro e de São Paulo em sua luta para não indianizar-se ao mesmo tempo em que se armavam de preconceitos contra os índios.

Dentre os muitos legados indígenas à sociedade que foi constituída em seu território, o mais importante foi, sem dúvida, o do seu sangue e genes. Desde a primeira hora, a mulher indígena foi o ventre em que se gerou a população que ocuparia o imenso território conquistado. Diogo Álvares, ou Caramuru, na Bahia, João Ramalho, em São Vicente, mais tarde, Jerônimo de Albuquerque, ele próprio um “meio-sangue”, em Pernambuco, passaram à história como alguns dos muitos exemplos de uniões poligâmicas de que resultaram os primeiros mamelucos, filhos de pais portugueses e índias. Mamelucos esses que, embora falando a língua materna, alimentando-se da mesma forma que seus antepassados aborígenes, identificavam-se ideologicamente com o pai.

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As expedições de caça ao índio e de procura do ouro, empreendidos pelos paulistas, eram compostas, em sua maioria, por mamelucos e índios recrutados nas aldeias missionárias. Durante muito tempo, paulista foi sinônimo de mameluco. Mamelucos foram os mais notáveis bandeirantes, como Domingos Jorge Velho, destruidor de Palmares que, para parlamentar com o bispo de Pernambuco, em 1697, precisou levar intérprete. Sérgio Buarque de Holanda, a quem devemos essa informação, menciona alcunhas de paulistas ilustres de origem Tupi, sustentando que

“Sinal, talvez, de que ainda em pleno Setecentos persistia, ao menos em determinadas camadas do povo, o uso da chamada língua da terra.”

Até o século XVIII, segundo o mesmo autor, nas capitanias onde atuaram os jesuítas (São Paulo, Rio Grande do Sul, Pará, Amazonas), a língua da terra predominava sobre o português, principalmente no âmbito familiar, na proporção de três falantes para um. Em São Paulo, os velhos ainda se expressavam em língua geral no começo do século XIX, como notou Hércules Florence, e no rio Negro isso ocorre até hoje.

Mais tarde, a composição da população se modificou. Chegaram mulheres brancas, acirrando-se o preconceito contra a nativa. As uniões regulares, antes incentivadas pela legislação colonial, foram sendo desmerecidas, estancando a entrada de genes indígenas. Já então o português podia prescindir do índio porque tirara dele o fundamental: a fórmula de sobreviver nos trópicos, a aprendizagem de seu método de plantio e as próprias plantas que cultivava, bem como a forma de prepará-las e consumi-las. Também obtivera dele a força de trabalho como escravo, substituído pelo negro nos empreendimentos mais lucrativos; sua combatividade de guerreiro para defendê-lo contra grupos hostis e o invasor estrangeiro; os seus conhecimentos da terra, como guia e como geógrafo. E da mulher indígena, a sensualidade, a servilidade e a fecundidade. Em razão da ampla extensão territorial em que se implantou a tradição cultural Tupi-guarani – que aproximadamente corresponde ao traçado do mapa do Brasil – foi possível imprimir um perfil uniforme à sociedade brasileira.

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De então até nossos dias, esse, lastro aborígene da cultura brasileira, sobretudo de base Tupi-guarani, conserva-se em grande parte do Brasil interiorano. Isso pode ser observado pela facilidade com que o sertanejo nordestino, o caiçara paulista, ou, mais propriamente, o caboclo amazônico encontram elementos culturais que lhes são familiares num contexto tribal. Para todos, a base da alimentação é a farinha de mandioca, cultivada e preparada pelos mesmos processos. Na casa indígena encontram vários utensílios domésticos que lhes são familiares, chamados pelos mesmos nomes: o tipiti para espremer o sumo da mandioca brava, o pilão, o ralador, a peneira, os balaios, os abanos, as esteiras trançadas de palha; os jacás, samburás, jamaxis, aturas, para trazer peixe, castanha ou produtos da roça. Reconhecem inúmeros implementos de pesca: o pari, que é a barragem para fechar o igarapé e atrapar o peixe; o juquiá ou covo, que é a armadilha crônica; cacuri, curral para peixe, tracajá ou tartaruga; o puçá, a tarrafa e o jererê, espécies de redes; a pesca com linha e anzol (hoje de aço, antes de fisga de osso) e pelo envenenamento dos peixes com certas folhas saporáceas, como o timbó. Do mesmo modo, são familiares ao caboclo e ao sertanejo certos tipos de embarcação como a ubá escavada em tronco de árvore a fogo; instrumentos de música, como o berimbau; armadilhas de caça, como o mundéu ou o alçapão para quadrúpedes e a arapuca para a caça de passarinhos; utensílios de mesa e de cozinha, como o porongo, a cuia, a gamela, o pote e a panela de barro. E, ainda, inúmeros pratos e quitutes como o mingau, o beiju, o chibé (farinha de mandioca misturada com água e às vezes temperada com fruta), a papa, a tapioca, a paçoca de peixe ou de carne com farinha, carne ou peixe assados no moquém, a muqueca, a quinhapira (molho de carne ou peixe com pimenta-da-terra), a mujeca (pirão de caldo de peixe, com farinha), a saúva ou içá moqueada, o tucupi (molho do sumo da mandioca-brava cozido), a bebida de guaraná, no Norte, a de erva-mate no Sul, o caxixi, “vinho” de mandioca fermentada e de frutas e tantos outros.

Uns e outros utilizam os mesmos produtos da indústria extrativa, como o breu, a almecega, a imburana e outras gomas; plantas tintoriais, como o pau-brasil, o jenipapo, o urucum; diversas fibras têxteis, entre as quais o caroá, o caraguatá, o tucum, o algodão; materiais de construção, como o sapé, o cipó, as folhas e os troncos de palmeiras; e um sem-número de ervas medicinais para pajelança e “mezinhas”.

Além desses elementos, o caboclo identificará vários outros, como a rede de dormir, os bancos, o fumo. Verificará que são comuns a índios e caboclos certos hábitos, como o de tomar banho diário de rio, andar descalço, descansar de cócoras. Chamará pelos mesmos nomes várias plantas, animais, acidentes geográficos e topônimos; temerá os mesmos duendes, utilizando fórmulas comuns para controlar aqueles seres sobrenaturais. Desse modo, índios e interioranos encontram formas de entendimento que vêm do início de nossa formação.

O peso da herança indígena pode ser aquilatado no retrato que faz José Veríssimo dos modos de vida e do sistema adaptativo do caboclo amazônico:

“A casa em que vive aquela gente é pouco mais que a palhoça do antigo bárbaro. Fincam no solo alguns esteios brutos (sem falquejo); os dois da frente ou do meio mais altos de modo a que o teto fique inclinado; apóiam sobre esses esteios algumas varas e sobre estas vão estendendo folhas de palmeiras atadas com cipós. Em regra, tais cabanas só têm duas portas, a da frente e a do fundo. Cercam o exíguo recinto com tapumes de jissaras partidas, cobertas às vezes de barro. Quase sempre há uma única divisão: a que serve de dormitório para o chefe da família. O mais é aberto, tendo no centro a lareira, onde nunca se deixa apagar o fogo. Por cima, chegado ao teto, está o jirau, como nas tendas do índio é a despensa da família. No interior destas cabanas, um ou outro móvel se encontrará mais que aqueles mesmo de que usava o antigo selvagem: balaios, esteira de piri, cuias, vasos de argila, redes ou macas de cipó etc. – tudo refletindo muito mal disfarçada a vida do aborígene. Nessas palhoças, o modo de viver, as relações de família, a economia, o regime doméstico – tudo pouco difere do que se observava na taba do selvagem. O homem come de cócoras como o índio ainda comia; cura-se dos males que o assaltam pelos mesmos primitivos processos; anda sempre descalço; quando viaja com a família, vai sempre adiante; caça, pesca como pescava e caçava o silvícola há quatrocentos anos, tendo demais apenas os petrechos e artifícios que a conquista introduziu; as embarcações de que se serve, nos rios e nas baías; o modo de preparar o roçado e de fazer o plantio; o fabrico de farinha, a moqueação de peixe, etc. – tudo acusa de modo flagrante que no homem simples do sítio, mais ou menos isolado da civilização, subsiste mais ou menos fielmente o que havia de mais ponderoso nas raças nativas.”

Do indígena aproveitou a colonização europeia a técnica de coivara (clarear os campos a fogo), que até hoje não foi substituída por processos mais modernos, constituindo-se numa prática sumamente nociva à economia agrícola. Enquanto o indígena utilizava essa técnica para limpar um pequeno trato de terra, extinguindo, pelo fogo, as pragas, os insetos daninhos e a vegetação rasteira, que à falta de enxada e outros instrumentos de ferro não poderia extirpar, o latifundiário aplica a mesma técnica para fazer extensas plantações agrícolas ou pecuárias. As grandes queimadas inutilizam madeiras preciosas e a terra desprotegida de vegetação é lavada por chuvas e enxurradas, carreando todo o húmus vegetal para o fundo dos rios e lagos. Na Amazônia, as consequências desse desmatamento são muito mais graves. O solo fica exposto à forte insolação e ao peso das chuvas. A superfície endurece, anulando sua permeabilidade. Destrói-se toda matéria orgânica, deslizando os minerais solúveis para as camadas mais profundas da terra, onde não penetram as raízes.

A queima em pequena escala praticada pelo indígena e o apodrecimento de galhos e troncos, deixados sem queimar, devolvem ao solo nutrientes necessários para alimentar os brotos. O revolvimento da terra com arado e trator a danifica irremediavelmente, ao contrário do que ocorre quando o índio usa simplesmente uma estaca de cavar para a semeadura. O cultivo de espécies diversas favorece a recaptura parcial dos nutrientes e evita a propagação de pragas, como acontece nas plantações monoculturas.

Examinados todos os fatores que presidem a adaptação do índio ao ecossistema da Amazônia, a arqueóloga Betty Meggers, numa passagem de seu livro Amazônia, a ilusão de um paraíso, afirma:

“O ponto a ser acentuado aqui é que a agricultura itinerante não constitui um método de cultivo primitivo e incipiente, tratando-se, ao contrário, de uma técnica especializada que se desenvolveu em resposta às condições específicas de clima e solo tropicais”.

Como se vê, desconhecendo embora o uso de instrumentos de ferro, as técnicas agrícolas indígenas eram bastante eficientes e perfeitamente ajustadas às condições de seu meio ambiente. Baseavam-se, como ainda hoje, num saber milenar – o conhecimento objetivo da natureza e suas leis – advindo da observação e da experimentação.

RIBEIRO, Berta. O índio na história do Brasil. São Paulo: Global, 2011. p. 101-5.

Fonte: http://oridesmjr.blogspot.com.br/