Imagine só: um belo dia, você e seu colega de trabalho decidem criar uma igreja. Parece coisa de filme ou de alguma história surreal, não é? Mas, acredite, isso aconteceu de verdade! Foi o que eu, Claudio Angelo, editor de ciência da Folha, junto com Rafael Garcia, repórter do jornal, resolvemos fazer em 2009. O que veio a seguir é uma verdadeira odisseia pelo sistema jurídico brasileiro, com algumas surpresas bem... digamos, interessantes!
Fundar uma Igreja: É Tão Fácil Assim?
A primeira coisa que você deve estar se perguntando é: "É realmente fácil abrir uma igreja no Brasil?". A resposta? Sim, incrivelmente fácil. Com o auxílio do departamento jurídico da Folha e do escritório Rodrigues Barbosa, Mac Dowell de Figueiredo Gasparian Advogados, criamos a Igreja Heliocêntrica do Sagrado Evangelho. Para isso, desembolsamos apenas R$ 418,42 em taxas e emolumentos, e em cinco dias úteis – nem consecutivos! – estávamos oficialmente reconhecidos. Não foi preciso reunir fiéis, muito menos seguir requisitos teológicos ou doutrinários. Loucura, né?
Benefícios Fiscais: Mais Vantajoso do Que Você Imagina!
Além da facilidade, abrir uma igreja no Brasil traz algumas vantagens financeiras de cair o queixo. Após obtermos nosso CNPJ, pudemos, por exemplo, abrir uma conta bancária e fazer aplicações financeiras totalmente isentas de Imposto de Renda e IOF. Mas isso é só a ponta do iceberg.
De acordo com o artigo 150 da Constituição, igrejas são imunes a impostos que recaiam sobre seu patrimônio, renda ou serviços relacionados com suas finalidades. Em outras palavras, uma vez criada, uma igreja pode escapar de impostos como IPVA, IPTU, ISS e outros mais. Parece um sonho, não é?
Sacerdotes e Privilégios Inusitados
Como se não bastassem os benefícios fiscais, as igrejas no Brasil têm ainda o poder de escolher seus próprios sacerdotes, o que abre as portas para mais privilégios. Imagine nomear seus filhos como "ministros religiosos" e, com isso, livrá-los do serviço militar obrigatório. Ah, e eles ainda teriam direito a prisão especial, caso um dia fosse necessário. Exagero? Talvez. Mas é a realidade.
Uma Crítica ao Sistema de Imunidade Tributária
O que essa história realmente revela é algo muito maior do que a simples facilidade de fundar uma igreja. Traz à tona uma discussão sobre até que ponto é justo conceder tantos privilégios a grupos religiosos. A imunidade tributária para igrejas foi pensada para proteger a liberdade de culto, um direito fundamental em qualquer democracia. Mas será que, em pleno século 21, essa proteção ainda é necessária?
Na prática, essa imunidade que deveria ser uma defesa contra abusos de poder pode ter se transformado em uma carta branca para isenções fiscais desnecessárias. O fato de igrejas se beneficiarem de isenções fiscais, enquanto cidadãos comuns e outras associações continuam pagando seus impostos, levanta uma questão importante: por que proteger apenas as religiões?
O Milagre da Igreja Heliocêntrica
E foi assim que, ao criar nossa igreja, acabamos por vivenciar o "primeiro milagre do heliocentrismo": uma crítica afiada ao sistema que permite que igrejas se beneficiem de isenções que talvez não precisem mais, ao passo que o resto da sociedade arca com o peso das contas. Como dizia Hobbes, o Estado é um "Leviatã" – um monstro de poder – mas, quando ele distribui benefícios de forma desigual, precisamos questionar se todos realmente estão recebendo um tratamento justo.
Igrejas Inusitadas: O Brasil e Seus Nomes Criativos
Se essa história já não fosse curiosa o suficiente, aqui vai mais uma curiosidade. O Brasil é um terreno fértil para a criatividade, e isso não é diferente quando se trata dos nomes das igrejas. Alguns exemplos de igrejas abertas em 2010 são quase poéticos, como a Igreja da Água Abençoada, ou então engraçados, como a Igreja Evangélica Pentecostal Cuspe de Cristo. E que tal a Igreja Automotiva do Fogo Sagrado? Parece até coisa de filme, mas são instituições reais.
Esses nomes inusitados são mais do que uma piada: eles refletem uma liberdade extrema no sistema de criação de religiões no Brasil, onde as fronteiras entre o sério e o cômico se misturam de uma forma única. A ironia, claro, está na seriedade do tema misturada com a absurda simplicidade do processo.
Um Chamado à Reflexão
No fim das contas, a criação da Igreja Heliocêntrica foi um experimento, uma forma de evidenciar as brechas e absurdos do sistema jurídico brasileiro. É uma crítica velada à forma como o Estado trata a questão das imunidades tributárias, especialmente quando se trata de igrejas.
Talvez seja hora de o Brasil repensar esses privilégios e avançar para um modelo mais justo, onde a imunidade não seja um benefício automático, mas algo realmente necessário e justificado. Quem sabe assim, o verdadeiro "milagre" não seja fundar mais uma igreja, mas sim transformar o Brasil em uma República onde todos são tratados de forma igual – independente de fé ou instituição.