VERDADES INCONVENIENTES

Psiquiatrização da vida, DSM V e a Mordaça das Inquietações humanas

psid215/03/2012 - Crianças que fazem muita birra sofrem de um distúrbio psiquiátrico recentemente descoberto, a chamada “desregulação do temperamento com disforia”. Adolescentes que apresentam, de forma particular, comportamentos extravagantes podem sofrer da “síndrome de risco psicótico”. Homens e mulheres que demonstram muito interesse por sexo, quer dizer, aqueles que têm fantasias, impulsos e comportamentos sexuais acima da temperança recomendada, muito provavelmente padecem do distúrbio psiquiátrico chamado “desordem hipersexual”. Essas são algumas das várias novidades que estão sendo propostas pela Associação ...

Americana de Psiquiatria (conhecida internacionalmente como APA), para suceder o DSM-IV (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), em vigor desde 1994. Há outras novidades que vem chamando a atenção de todos. Por exemplo, a “dependência à internet” e a “dependência a shopping”. O que o DSM representa? Não apenas para a saúde pública propriamente dita, mas para a própria construção da subjetividade e intersubjetividade do homem contemporâneo? A medicalização crescente do nosso cotidiano. Apenas para se ter uma ideia da chamada “inflação” dos distúrbios considerados objeto da psiquiatria: há cinquenta anos eram seis as categorias de diagnóstico psiquiátrico, e hoje são mais de trezentas.

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Nas últimas décadas o DSM tem servido como a bíblia para a chamada psiquiatria moderna e para os saberes e práticas subordinados a sua hegemonia. Os autores de suas sucessivas edições argumentam que suas pretensões são: (1) Fornecer uma “linguagem comum” para os clínicos; (2) servir de “ferramenta” para os pesquisadores; (3) ser uma “ponte” para a interface clínica/pesquisa; (4) ser o “livro de referência” em saúde mental para professores e estudantes; (5) disponibilizar o “código estatístico” para propósitos de pagamento dos serviços prestados e para fins administrativos do sistema de saúde; e, finalmente, (6) orientar “procedimentos forenses”.

Os impactos provocados por cada edição do DSM são inúmeros. Bem próximo de nós está o exemplo da pesquisa da OMS sobre a saúde mental dos moradores da metrópole de São Paulo. Segundo os resultados dessa pesquisa, cerca de 1/3 da sua população sofre de algum distúrbio psiquiátrico. A grande imprensa nacional tomou tal pesquisa para chamar a atenção da população para a situação do sistema de assistência em saúde mental do país, que estaria muito aquém das demandas dos cidadãos, muito em particular o SUS. E que, sendo São Paulo uma megalópole de um país com tendências à urbanização acelerada, o seu exemplo deve ser considerado como alarmante.

 

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O que escapa à maioria das pessoas que receberam essa notícia pela grande mídia são detalhes de grande importância para a credibilidade da própria pesquisa. Quem financiou essa pesquisa (além da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo), entre outros órgãos públicos, como a própria OMS e a Opas) foram grandes conglomerados da indústria farmacêutica: Ortho-McNeil Pharmaceutical, a GlaxoSmithKline, Bristol-Meyers Squibb e Shire. Curiosamente, os autores declaram não haver conflito de interesses. Se isso não é conflito de interesses, então é necessário revisar esse conceito!

O DSM-V chega sendo objeto de grandes controvérsias. Basta uma consulta na Internet para se tomar conhecimento das contundentes críticas feitas por alguns dos principais autores do DSM-III e DSM-IV. O que o DSM-V vem reforçar ao DSM-IV? Parece ser a tendência à medicalização dos comportamentos humanos de nossa época, ao transformá-los em patológicos em seus mínimos detalhes. Nos termos que vêm se tornando públicos, o DSM-V reforça a tendência de assegurar e ampliar o mercado da saúde mental: 1) o consumo arbitrário de medicamentos de natureza psicotrópica, sem qualquer cuidado com os seus efeitos sobre a própria saúde de seus consumidores; (2) a expansão de serviços de diagnóstico e de consultas; (3) a medicalização da vida.

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Na medida em que o modelo “a-teórico” (como ele mesmo se define) do DSM nos possibilita constatar, principalmente a partir dessa sua quinta versão, que seu objetivo real não é lançar luz sobre o conhecimento dos sofrimentos mentais, e, sim, produzir mais mercado para as intervenções psiquiátricas, cumpre à sociedade recusar esse projeto medicalizante/patologizante. As entidades de saúde, particularmente as médicas, os Conselhos de Saúde e de Direitos Humanos, os órgãos públicos de normalização, regulação, fiscalização (Ministério da Saúde, Ministério Público, conselhos profissionais, dentre outros) precisam se posicionar e cobrar a responsabilidade dos autores e multiplicadores de tais iniciativas.

* Paulo Amarante é presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), diretor do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz)

* Fernando Freitas é diretor da Abrasme e pesquisador do LAPS/Fiocruz


DSM-V: um atentado ao direito de viver

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Medicalização - A Mordaça das Inquietações Humanas

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Por Liége Lise (psicanalista) - Uma nota divulgada pela Anvisa em fevereiro deste ano aponta um crescimento de 75% no consumo do medicamento cloridrato de metilfenidato, mais conhecido como Ritalina, em crianças com idade de 6 a 16 anos, entre 2009 e 2011, no Brasil. A medicação é utilizada no tratamento do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). O diagnóstico de hiperatividade ou déficit de atenção é dado a partir dos seguintes sintomas:

a criança apresenta dificuldade em prestar atenção na aula, desinteresse pelo que está sendo falado pelo adulto, falta de foco e concentração para desempenhar a atividade proposta, sinais de ansiedade para falar, esquecimento, dificuldade em manter-se sentada e tendência a “sonhar acordada”.

Antes de rotular a criança como hiperativa ou desatenta e oferecer, como única alternativa, algum medicamento, caberiam algumas reflexões: cabe ao médico a tarefa de estabelecer o que seria um padrão de normalidade e normatizar os comportamentos de ensino-aprendizagem da criança? Dada as profundas mudanças causadas pela revolução tecnológica, a escola não precisaria rever sua função, promover mudanças na sua prática de ensino e na concepção do que é educar para um novo mundo?

Não estaríamos transformando em patologia questões culturais que pedem mudança de postura e, ao medicarmos as dores humanas, nos eximindo de responsabilidade diante dos novos desafios na educação dos filhos? Do contrário estaremos agindo como naquela história em que foram vestir o santo, mas, como a roupa havia sido lavada, encolheu e ficou curta. Então, a solução encontrada foi serrar as pernas do santo. No caso do TDAH, precisamos compreender o porquê desse crescimento significativo entre as crianças e questionarmos se a medicação, no caso a Ritalina, - a conhecida droga da obediência -, deve ser a principal forma de tratamento.

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Uma das maiores referências médicas no tratamento de TDAH, o Dr. Ned Hallowell, psiquiatra infantil e autor de livros best-seller no assunto, mostra-se preocupado com o crescimento alarmante do diagnóstico da doença entre as crianças em idade escolar nos Estados Unidos. Em recente matéria publicada no jornal The New York Times, afirmou: “Agora é o momento de chamar a atenção para os perigos que podem estar associados a diagnósticos feitos de forma descuidada. Nós temos crianças lá fora usando essas drogas como anabolizantes mentais – o que é perigoso, eu odeio pensar que desempenhei um papel na criação desse problema”.

Escutar e observar o que cada criança quer dizer, através de seu comportamento tido como desajustado, é não silenciar os conflitos inerentes a construção da vida. É um convite a lidarmos com nossas angústias de forma criativa. Do contrário, estamos reduzindo temas humanos a questões biológicas e orgânicas e, transformando em doença nossas expressões subjetivas e existenciais.

Fonte: http://www.ensp.fiocruz.br

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