HISTÓRIA E CULTURA

Bioética e Influência

manip1Por Hélio Angotti Neto, 27/03/2016 - Cultura também é política, para o bem ou para o mal. E a Bioética está intrinsicamente ligada a cultura e à manipulação política a médio e longo prazo. A Ética Médica e, portanto, a Bioética, são elementos inevitáveis de influência na sociedade. Todas as relações humanas são palco para o exercício da influência. E a influência é um tipo de poder exercido ou recebido. Em si, tal poder não é bom nem mau, é um ...

simples fato presente em todas as relações humanas. Quando se fala em poder, pode-se discriminar três tipos essenciais: o poder coercitivo (militar e político), o poder de troca (econômico) e o poder cultural (psicológico e espiritual). Na teoria política internacional, o poder bélico e político bruto seria o Hardpower, enquanto o econômico e o cultural seriam o Softpower.

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O médico pode exercer poder coercitivo somente em condições muito especiais, como a de pacientes em surto psicótico violento que precisam de contenção e medicação forçada. Em relação ao poder de troca, a remuneração médica insere tal elemento no Ato Médico, embora não exclua a beneficência e a caridade e nem seja – ou deva ser – o elemento central. Logo, o tipo de poder prioritário na relação médico-paciente é, de fato, o poder cultural, também denominado psicológico, espiritual ou psíquico.

O médico apreende a situação existencial do paciente e, por meio da empatia, decodifica as informações necessárias para ajudar. O objetivo final é convencer o paciente acerca do que é melhor ser feito após ser adequadamente informado do que o paciente necessita e quer. O mais preciso diagnóstico e o melhor plano terapêutico serão inúteis se o paciente não compreender ou não confiar no médico. Logo, cabe ao médico ser um bom comunicador, cabe exercitar o poder cultural de forma eficaz.

Qualquer fator que regulamente o ato médico e oriente sua influência sobre os valores do paciente será, consequentemente, um forte elemento de exercício do poder cultural na sociedade. Uma das facetas incontornáveis da Bioética, enquanto área de estudo que medita e busca gerir a moralidade e a prática em saúde, é a de influenciadora e, portanto, de agente de exercício do poder cultural em sociedade. Cientes disso, há que se concluir que a Bioética é um instrumento potencial de engenharia social – manipulação – e que seu conteúdo gera obrigatoriamente repercussões na política.

A repercussão da cultura na política não é nenhuma descoberta recente. Só para citar exemplos mais contemporâneos, cabe lembrar do comunista italiano Antônio Gramsci[1], que desestimulou a tomada violenta da sociedade em prol da tomada cultural e sutil para somente depois controlar politicamente. Recentemente, após aprender um pouco da estratégia cultural comunista, o lado oposto do espectro político entendeu o valor da batalha cultural. David Horowitz nos Estados Unidos[2], Daniel Friberg na Europa[3] e Olavo de Carvalho no Brasil[4] alertam com insistência sobre o valor da cultura para a política ou, conforme a terminologia de Friberg, sobre o valor da Metapolítica.

Cultura também é política, para o bem ou para o mal. E a Bioética está intrinsecamente ligada à cultura e à manipulação política a médio e longo prazo. Ou os médicos e demais profissionais da saúde assumem a responsabilidade de se tornarem agentes culturais eficientes e conscientes, ou permanecerão inermes diante de manipuladores que enxergam na saúde humana uma valiosa forma de manipular e controlar em prol de certas ideologias políticas danosas ao paciente e à sociedade como um todo.

Prof. Dr. Hélio Angotti Neto é Coordenador do Curso de Medicina do UNESC, Diretor da Mirabilia Medicinæ (Revista internacional em Humanidades Médicas), Membro da Comissão de Ensino Médico do CRM-ES, Médico Oftalmologista pela Secretaria de Saúde do ES, Membro do Comitê de Ética em Pesquisa do UNESC e criador do Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina (SEFAM).

Lattes: http://lattes.cnpq.br/6394379738440524

SEFAM: www.medicinaefilosofia.blogspot.com.br

Mirabilia Medicinæ: http://www.revistamirabilia.com/medicinae

[1] Conforme a coletânea de suas obras, incluindo os famosos Cadernos do Cárcere.
[2] David Horowitz publicou uma série de livros essenciais para a compreensão da estratégia revolucionária da esquerda e para a nova estratégia defensiva da direita. É também o organizador de um curioso portal chamado Discover the Networks, no qual ele rastreia os financiamentos das ONGs ao redor do mundo e desvela suas afiliações políticas.
[3] FRIBERG, Daniel. The Real Right Returns. United Kingdom: Arkton, 2015.
[4] Olavo de Carvalho oferecerá em breve um curso sobre política e cultura. Saiba mais em: http://www.seminariodefilosofia.org/politica-e-cultura-pre-lancamento/


Bioética da elite "esclarecida"

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Bioética para o povo, pelo povo ou sobre o povo? Reflexões acerca da bioética como instrumento de engenharia social

Por Hélio Angotti, 15/04/2016 - Em recente artigo publicado no Academia Médica (acima!), tratei acerca do aspecto de poder cultural ligado à Bioética. Neste, analiso algumas consequências e exemplos dessa realidade. O discurso padrão nos informa que os jovens das décadas de 60 e 70, fomentados pela ideologia trazida pela famigerada Escola de Frankfurt, se ergueram contra as convenções, contra as tradições e contra o elitismo. Nesse contexto surgiu a Bioética, justificada pelo anseio de democratizar o debate em saúde. Segundo reza a lenda corrente na academia, deveríamos ter um debate de amplo acesso, diferente do debate enclausurado, elitista e opressor dos médicos, trancafiados em suas torres de marfim com seus códigos exclusivistas e seu Juramento antiquado e ineficaz para nos proteger de abusos horrendos.

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O livro de Bioética mais lido no mundo inteiro, por exemplo, já começa anunciado placidamente, inexoravelmente, a derrota da moralidade hipocrática da medicina e a necessidade incontornável da adoção da nova Bioética. É o famigerado Mantra de Georgetown.[1] Em todo esse cenário, parcialmente verdadeiro e, portanto, verossímil, há diversas mistificações e torções exageradas da realidade. Não duvido que na raiz da Bioética estava o desejo saudável de transdisciplinaridade. Acredito sinceramente que os melhores bioeticistas ainda anseiam pelo contato com outras mentes e corações apaixonados pela vida humana, e querem realmente abrir o debate sincero em busca do melhor. Mas ao mesmo tempo vejo diversos estudiosos da Bioética que estão claramente dispostos a utilizá-la como arma de combate cultural, como instrumento de engenharia social e até mesmo de opressão contra discordantes.[2]

Quero convidar o leitor à reflexão acerca de quais usos tem sido atribuídos à Bioética em nossos dias. Embora os médicos sejam acusados de paternalistas e elitistas, não é totalmente certo dizer que a ética denominada profissional é inadequada por não representar a sociedade. Médicos, enfermeiros, psicólogos e fisioterapeutas, entre tantos outros, são membros da sociedade e representam-na, acreditados como profissionais, em seus grêmios. Mas é óbvio que, ao mesmo tempo, há que se buscar uma harmonia saudável entre os valores gerais da sociedade e os valores específicos de seus habitantes especializados em determinada área, neste caso a da saúde. É no mínimo suspeito ser instaurada uma medicina abortista num país cristão que é maciçamente contra o aborto, como está para acontecer no Brasil.

De certa forma, o debate democratizou, mas talvez não da forma que os mais otimistas esperavam. Ao invés da participação da sociedade brasileira, muitas vezes observo a ingerência externa e a participação de agências e instituições internacionais totalmente contrárias aos valores brasileiros.[3] É inegável que, hoje, profissionais de diversos ramos discutem assuntos arcanos onde antes médicos e enfermeiros dominavam. Porém, os assuntos ainda permanecem arcanos, dominados por “magos” diferentes.

Os temas especializados da Bioética ainda habitam o interior de suas torres de marfim e repetidamente revelam estar muito longe dos valores do público e de seu escrutínio. Alguns bioeticistas, filósofos e formuladores de políticas públicas parecem repudiar o contato com a “plebe”. Plebe, esta, repleta daquilo que a Organização das Nações Unidas, por meio da UNESCO, chama de preconceitos familiares, isto é, religião e tradições herdadas.[4]

Descobri que a Bioética não era tão aberta quanto eu imaginava há algum tempo, quando encontrei o artigo que defendia chamar o assassinato de bebês pelo nome de Aborto Pós-Nascimento. Deparei-me com o artigo quase que aleatoriamente, ao passear pelo conteúdo do Journal of Medical Ethics. Levei-o ao Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina para discutir com os alunos e a reação foi quase que unânime: todos estavam chocados em saber como algo tão monstruoso quanto o homicídio infantil fora discutido de forma tão corriqueira, tão vã, no meio acadêmico especializado da Bioética.[5]

A reação na mídia também veio. Pessoas liam horrorizadas o que respeitáveis senhores e senhoras discutiam de cima de suas cátedras, com palavras elegantes e conceitos rigorosos. Era uma obscenidade, mas era uma obscenidade elegante e lógica, entenda bem. Do outro lado, editores e pesquisadores reclamaram da violência verbal daqueles “populares” que leram o artigo e responderam horrorizados à proposta ali contida: matar bebês. Eram os terríveis “reacionários incultos” que se erguiam escandalizados para censurar o debate iluminado dos acadêmicos. De um lado havia o choque à sensibilidade moral de milhões de pessoas que mal podiam acreditar no que se propagava num respeitado periódico de ética médica e que reagiam com acusações verbais altamente agressivas; porém, do outro, estava uma elegante e erudita elite universitária que propunha, com termos mui chiques e técnicos – é tudo lógica, afinal – o extermínio de vidas humanas negando-lhes a condição de pessoa digna.

E isso chamou minha atenção. Vive-se uma guerra cultural, isto não é novidade. Mas o curioso é que de um lado está a elite política, a elite empresarial e a elite midiática com suas tropas de choque: artistas, professores, repórteres e cantores. Também desse lado está boa parte da elite universitária mundial. Uma privilegiada minoria, sem dúvida. Seus valores, de regra, são justamente o contrário do que o povo brasileiro maciçamente defende. O povo é contra o aborto? Reúna atores e cantores para convencer a turba acéfala – ou assim devem achar ao querer manipular a massa de forma tão tosca – de que matar fetos e bebês é a coisa mais linda e progressista do universo. O povo é religioso? Contrate milhares de professores para ensiná-los que esse negócio de religião é “coisa do capeta” ou, na melhor das hipóteses, é só uma superstição boba de gente burra.

O povo gosta de uma vida pacífica, ordeira e segura? Convença-os de que isso é coisa de burguês acomodado, e que o bom mesmo é exaltar a marginalidade, como Herbert Marcuse já ensinou quando percebeu que os proletários estavam enriquecendo e virando burgueses. A atual elite que se diz progressista e seus aliados complacentes, interessados mesmo é na grana dos pagadores de impostos, estão aí para ensinar os jovens a rebelarem-se contra os valores de suas famílias, enquanto os domesticam e os preparam a entregar toda sua moral e sua cosmovisão aos iluminados que nunca os viram, ou, se os viram, pouco se importam com seu destino. A Bioética, nesse contexto de elite praticante da ardilosa engenharia social, tocando ao som dos conselhos maquiavélicos de Gramsci, é mais uma arma do que um canal pelo qual a voz do povo pode se manifestar.

Se determinada escola de bioética convence as pessoas de certos interesses, de certas necessidades de mudanças sociais, a bioética é boa, é excelente, é maravilhosa. Se não, o povo é que é retrógrado e precisa de mais doses de bioética, intratecais, quem sabe? Mas o que defendo é o seguinte: o povo deve ter acesso à ética médica e à bioética, e estas devem respeitar os valores do povo que as suporta, ao invés de ansiar por uma tosca e desrespeitosa engenharia social. Defender isso não é desestimular o debate, pelo contrário, é respeitar a bioética que respeita os valores do povo e colocar todos os conflitos às claras. O que vejo muitas vezes é a supressão daqueles que discordam de determinada elite. Só para citar um breve exemplo, fui testemunha pessoal do bloqueio autoritário da participação de um filósofo num evento de Direitos Humanos por causa de seu espectro político de direita. Veja bem, debate só parece ser bom para essas mentes tacanhas quando os dois lados concordam.

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E cabe lembrar, aqui no fim, que há muitas bioéticas, e várias respeitam os valores do povo brasileiro sim. O que não suporto é a bioética ideológica da torre de marfim (ou de rubi, no caso do Brasil), que ao chocar o cidadão comum com seu sangrento pensamento de vanguarda, ataca a moralidade alheia com a pose de iluminada ditadora de parâmetros civilizacionais e guia confiável do povo, suprimindo outras visões e utilizando rótulos odiosos. Não posso concordar com a utilização de jovens médicos como bucha de canhão e massa de manobra para o ataque aos valores da sociedade no contexto de guerra cultural em que vivemos. Podem discordar dos valores que eu defendo, e é claro que muitos discordam. Mas que o façam conscientes de seus atos e de suas influências ideológicas, em respeito à própria integridade e à sanidade, e que não tenham a ousadia irresponsável de silenciar um dos lados e chamar isso de debate.

Notas:

[1] BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics, Seventh Edition. New York: Oxford University Press, 2013, p. 1.

[2] Exemplos bem conhecidos são os dos bioeticistas internacionalmente famosos, como Giani Vattimo e Julian Savulescu que defendem ser obrigatório para um médico realizar o aborto, independente de seus valores pessoais, e Udo Schüklenk, que escreve contra a objeção de consciência de médicos canadenses que não desejam praticar a eutanásia.
[3] A Organização Mundial da Saúde, claramente favorável ao projeto abortista em países “subdesenvolvidos” ou “em desenvolvimento”, distribui material educativo e pressiona diversos países com sua agenda ideológica específica.
[4] Como denunciado por Pascal Bernardin em seu livro Maquiavel Pedagogo. BERNARDIN, Pascal. Maquiavel Pedagogo. Campinas: Vide Editorial, 2010.
[5] GIUBILINI, Alberto; MINERVA, Francesca. After-birth abortion: why should the baby live? Journal of Medical Ethics, (2012). doi:10.1136/medethics-2011-100411 Internet, http://jme.bmj.com/content/early/2012/03/01/medethics-2011-100411.full.pdf+html


Hélio Angotti Neto é coordenador do Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina e autor do livro A Morte da Medicina.

Fonte: https://academiamedica.com.br/
           http://www.midiasemmascara.org/