HISTÓRIA E CULTURA

A Morte de João Paulo I - Parte 2

papa_soriso_5Enquanto uma parte do tempo de Luciani era absorvida pelas atividades triviais da Cúria, a maioria de suas horas de vigília era dedicada a problemas mais sérios. Dissera ao corpo diplomático que o Vaticano renunciava a todas as reivindicações de poder temporal. Não obstante, o novo Papa logo descobriu que praticamente todos os grandes problemas do mundo passavam por sua mesa. A Igreja Católica, com mais de 18 por cento da população mundial lhe prestando fidelidade espiritual, representa uma força poderosa; como tal, era obrigada a assumir uma posição e tomar uma atitude numa enorme variedade de problemas.
Além de sua atitude em relação ao General Videla, da Argentina, qual seria a reação de Albino Luciani à pletora de ditadores que presidiam vastas populações católicas? Qual seria a sua reação à camarilha de Marcos, nas Filipinas, com seus 43 milhões de católicos? Em relação ao auto-eleito Pinochet, no Chile, que tem mais de 80 por cento da população de católicos? E o General Somoza, da Nicarágua, o ditador tão admirado pelo assessor financeiro do Vaticano, Michele Sindona? Como Luciani restauraria a posição de uma Igreja Católica para os pobres e oprimidos num pais como Uganda, onde Amin providenciava acidentes fatais para padres como uma ocorrência quase cotidiana? Qual seria sua resposta aos católicos de El Salvador, onde alguns membros da junta militar no poder consideravam que ser católico era ser um inimigo”? Trata-se de um país em que 96 por cento dos habitantes são católicos e que prometia oferecer ao mundo uma receita de genocídio, um problema um pouco mais sério do que o debate no Vaticano sobre a cadeira do Papa.

Como o homem que dissera palavras duras sobre o comunismo de seu púlpito em Veneza falaria ao mundo comunista da Basílica de São Pedro? O cardeal que aprovara um “equilíbrio do terror” em relação às armas nucleares manteria a mesma posição quando os defensores internacionais do desarmamento unilateral solicitassem uma audiência?

Havia também incontáveis problemas, herdados de Paulo VI dentro de suas próprias fileiras. Muitos padres queriam o fim do voto de celibato. Havia pressões para se permitir o ingresso das mulheres no sacerdócio. Havia grupos que exigiam a reforma das leis canônicas sobre o divórcio, aborto, homossexualismo e uma dúzia de outras questões... e todos se dirigiam a um só homem, exigindo, suplicando, exortando. O novo Papa demonstrou rapidamente, nas palavras de Monsenhor Loris Capovilla, o ex-secretário de João XXIII, que “havia mais em sua loja do que ele mostrou na vitrine”. Quando o Ministro do Exterior Monsenhor Agostino Casaroli procurou o Papa com sete questões sobre as relações da Igreja com diversos países do lest europeu, Albino Luciani prontamente deu as soluções para cinco pediu um pouco de tempo para analisar as outras duas. O aturdido Casaroli voltou a seu gabinete e relatou a um colega o que acontecera O sacerdote perguntou-lhe:

— As soluções foram corretas?

— Totalmente corretas, na minha opinião. Mas seria preciso um ano para se arrancar as respostas de Paulo.

Outro dos problemas encaminhados ao Papa envolvia a Irlanda e a atitude da Igreja em relação ao IRA. Muitos consideravam que a Igreja Católica não fora bastante franca e objetiva em sua condenação da continua carnificina na Irlanda do Norte. Poucas semanas antes da eleição de Luciani, o Arcebispo O’Fiaich, então o Primaz Católico de Toda a Irlanda, alcançara as manchetes com sua denúncia das condições na prisão de Maze, em Long Kesh. O’Fiaich visitara a prisão e depois falara de seu choque “com o fedor e sujeira em algumas celas, os remanescentes de carne putrefata e excremento humano espalhados pelas paredes”. Havia muitos outros comentários similares. Em nenhum lugar do seu longo pronunciamento, liberado para os meios de comunicação com extremo profissionalismo, o arcebispo reconhecia que as condições na prisao eram criadas pelos próprios presos.

A Irlanda estava sem um cardeal. Muitos tentavam influenciar o Papa. O Arcebispo O’Fiaich era considerado por alguns como o maior candidato ao posto, outros sentiam que sua promoção à Arquidiocese de Armagh provou ser um absoluto desastre.

Albino Luciani devolveu o dossiê sobre O’Fiaich a seu Secretário de Estado com um movimento negativo e a frase:

— Acho que a Irlanda merece um pouco mais.

A procura por um cardeal continuou.

Em setembro de 1978, a crise no Líbano não era considerada de maior importância na lista dos problemas mundiais. Havia dois anos que reinava uma espécie de paz, entremeada de combates esporádicos entre tropas sírias e cristãs. Muito antes de qualquer outro chefe de Estado, o pequeno e discreto sacerdote do Veneto compreendeu que o Líbano era um matadouro em potencial. Discutiu o problema em profundidade com Casaroli e disse que desejava visitar Beirute antes do Natal de 1978.

Um dos homens que Luciani recebeu, durante as audiências matutinas de 15 de setembro, foi o Cardeal Gabriel-Marie Garrone, Prefeito da Sagrada Congregação para a Educação Católica. Essa audiência em particular é um exemplo extraordinário de como eram excepcionais os talentos de Luciani. Garrone viera discutir um documento chamado Sapientia Christiana, que versava sobre a constituição apostólica e as diretivas e regras de todas as faculdades católicas do mundo. Já no início dos anos 60 o Concílio Vaticano Segundo revisara as orientações para os seminários. Depois de dois anos de discussões internas, a Cúria Romana enviara suas propostas aos bispos do mundo, a fim de que estudassem e apresentassem suas recomendações. Todos os documentos relevantes foram depois submetidos a mais duas reuniões curiais, com a presença de consultores não-curiais. Os resultados foram em seguida examinados pelo menos por seis departamentos curiais, o documento final sendo apresentado ao Papa Paulo VI em abril de 1978, 16 anos depois das reformas propostas serem discutidas pela primeira vez. Paulo pensara em divulgar o documento a 29 de junho, dia de São Pedro e São Paulo. Mas um documento com um período de gestação de cerca de 16 anos naõ podia ser aprontado tão depressa no departamento de tradução da Cúria. E o Papa Paulo já morrera quando o documento finalmente ficou pronto. Qualquer iniciativa não proclamada por ocasião da morte de um Papa perde o valor, a menos que seja aprovada pelo sucessor. Por isso, o Cardeal Garrone entrou na audiência com o novo Papa com uma profunda apreensão. Cerca de 16 anos de trabalho árduo poderiam ser jogados no lixo se Luciani rejeitasse o documento. O antigo professor de seminário de Belluno disse a Garrone que passara a maior parte do dia anterior estudando o documento. Depois, sem sequer consultar uma cópia. pôs-se a discuti-lo em profundidade e detalhes. Garrone ficou atônito com a percepção e compreensão do Papa de um documento tão complexo. Ao final da audiência, Luciani comunicou que o documento tinha sua aprovação e deveria ser publicado a 15 de dezembro.

Como Casaroli, Baggio, Lorscheider e diversos outros homens Garrone saiu da audiência com Luciani extremamente admirado. Voltando a seu gabinete, encontrou por acaso com N’lonsenhor Scalzotto, da Propaganda Fide, com quem comentou:

— Acabo de me encontrar com um grande Papa.

Enquanto isso, o “grande Papa” continuava a abrir caminho pela montanha de problemas deixados por Paulo, Um deles era o Cardeal John Cody, de uma das mais poderosas e ricas dioceses do mundo, Chicago.

Para um cardeal, qualquer cardeal, ser considerado um grande problema pelo Vaticano é insólito.., mas Cody era um homem insólito. As acusações formuladas contra o Cardeal Cody, nos 10 anos anteriores ao início do pontificado de Luciani, eram extraordinárias. Mesmo que apenas cinco por cento fossem verdadeiras, então Cody não tinha condições de ser um padre, muito menos o cardeal de Chicago.

Antes de sua promoção à Arquidiocese de Chicago, em 1965, ele dirigira a diocese de Nova Orleans. Muitos padres que tentaram trabalhar com ele em Nova Orleans ainda exibem as cicatrizes para prová-lo. Um deles recordou:

— Quando aquele filho da puta ganhou Chicago, promovemos uma festa e entoamos o Te Deum. Nosso ganho era a perda de Chicago.

Quando conversei sobre a carreira subsequente do cardeal de Chicago com o Padre Andrew Greeley, famoso sociólogo cristão, escritor e antigo critico de Cody, comentei que outro padre de Chicago comparara o Cardeal Cody ao Capitão Queeg, o despótico e paranóico comandante, naval em The Caine Mutiny. A resposta do Padre Greeley foi imediata:

— Acho que é uma injustiça com o Capitão Queeg.

Nos anos que se seguiram à nomeação do Cardeal Cody para Chicago, tornou-se’moda na Cidade dos Ventos compará-lo com o Prefeito Richard Daley, um homem cujas práticas no comando da cidade só eram democráticas por acaso. Havia, porém, uma diferença básica. A cada quatro anos, Daley tinha de prestar contas de seus atos aos eleitores, pelo menos em teoria. Se conseguissem superar a sua máquina política, poderiam afastá-lo do cargo. Mas Cody não fora eleito. A não ser por uma ação muito drástica de Roma, ele continuaria ali pelo resto de sua vida. Cody gostava até de comentar:

— Não tenho de prestar contas a ninguém além de Roma e Deus.

Os acontecimentos provariam que Cody se recusava a prestar contas até a Roma. Com isso, só restava Deus.

Quando chegou a Chicago, Cody tinha a reputação de ser um excelente gerente financeiro, um liberal progressista que batalhara por muito tempo e com grande afinco pela integração escolar em Nova Orleans e um prelado muito exigente. Ele não demorou a perder os dois primeiros atributos. No início de junho de 1970, quando era tesoureiro da Igreja Americana, aplicou dois milhões de dólares em ações da Penn Central. Houve um colapso das ações poucos dias depois e a companhia faliu. Cody investira ilegalmente o dinheiro durante a administração de seu sucessor devidamente eleito, a quem se recusara a entregar os talões de cheques até muito depois do prejuízo. Mas conseguiu sobreviver ao escândalo.

Semanas depois de sua chegada a Chicago, ele demonstrou o seu tipo particular de liberalismo progressista no tratamento com alguns padres. Nos arquivos de seu antecessor, Cardeal Albert Meyer, descobriu uma lista de padres “problemas”, homens que eram alcoólatras, senis ou simplesmente incompetentes. Cody começou a passar as tardes de domingo a visitar as residências paroquiais. Demitia pessoalmente os padres, dando-lhes apenas duas semanas para deixarem as residências. Não havia fundos de pensão, planos de aposentadoria ou esquemas de seguros para os padres em Chicago em meados dos anos 60. Muitos daqueles tinham mais de 70 anos. Cody simplesmente jogouos na rua.

Ele começou a transferir padres de uma parte para outra da cidade, sem qualquer consulta. Assumia uma atitude similar em relação a fecnar conventos, residências parôquiais e escolas. Houve uma ocasião em que, por ordem de Cody, uma equipe de demolição começou a derrubar uma residência paroquial e um convento enquanto os ocupantes ainda se banhavam e tomavam o café da manhã.

O problema básico de Cody parecia ser uma profunda incapacidade de reconhecer o Concílio Vaticano Segundo como um fato da vida. Houvera conversas intermináveis no Concilio sobre partilhar o poder, tomar as decisões em colegiado. Mas essas notícias nunca chegaram à mansão do cardeal.

Numa diocese com 2,4 milhões de católicos, começaram a ser definidas as linhas de batalha entre as facções a favor e contra Cody. Enquanto isso, a maioria dos católicos na cidade se perguntava o que estava acontecendo.

Os padres formaram uma espécie de sindicato, a Associação dos Padres de Chicago. Cody ignorou quase que totalmente suas reivindicações. Cartas pedindo reuniões não eram respondidas. Telefonemas descobriam que o cardeal estava constantemente “ocupado”. Alguns permaneceram para continuar a luta por uma Igreja dirigida de forma mais democrática. Muitos desistiram. Numa década, um terço dos clérigos de Chicago abandonou o sacerdócio. Embora essas de monstrações maciças comprovassem que havia algo de podre no Estado de Illinois, o Cardeal Cody continuou a insistir que seus oponentes não passavam de “uma minoria altamente ruidosa”.

O cardeal também atacou a imprensa local, declarando-a hostil. Na verdade, porém, os meios de comunicação de Chicago foram extraordinariamente tolerantes durante o reinado de Cody.

O homem que lutara pela integração em Nova Orleans tornou-se conhecido em Chicago como o homem que fechou escolas para negros, alegando que a Igreja não tinha condições de mantê-las... numa diocese com uma receita anual que beirava os 300 milhões de dólares.

Como acontecia praticamente com todos os seus atos, Cody fechou a maioria das escolas sem consultar ninguém, nem mesmo a junta escolar. Quando o clamor de “racista” se elevou, Cody tratou de se defender com a declaração de que muitos negros não eram católicos e que a Igreja não tinha a obrigação de educar negros protestantes de classe média. Mas foi muito difícil de se desvencilhar do rótulo de racismo.

A medida que os anos passaram, as acusações contra Cody se multiplicaram. O conflito com amplos setores do seu próprio clero tornou-se encarniçado. Sua paranóia desabrochou.

Começou a contar histórias de como fora utilizado em trabalho secreto de espionagem para o governo dos Estados Unidos, e as contribuições com o FBI. Disse aos padres que também realizara missões especiais para a CIA, inclusive voando a Saigon. Os detalhes eram sempre vagos. Mas se Cody dizia a verdade, envolvera-se em atividades de serviço secreto para o governo desde o inicio dos anos 40. Parecia que John Patrick Cody, o filho de um bombeiro de St. Louis, levara muitas vidas.

A reputação de astúcia financeira que levara para Chicago e fora um tanto afetada pelo prejuízo de dois milhões de dólares da Penn Central sofreu um novo golpe quando alguns de seus oponentes começaram a investigar sua carreira anterior, bastante movimentada. Nos intervalos dos vôos reais ou imaginários sobre territórios inimigos, ele conseguira involuntariamente reduzir a um estado de pobreza uma parte da Igreja, embora não da maneira idealizada por Albino Luciani. Deixara a diocese de São José, em Kansas City, com uma dívida de 30 milhões de dólares. Fizera a mesma coisa em Nova Orleans, o que acrescentava um significado maior ao Te Deum do clero local por ocasião de sua partida. Pelo menos deixara um memento permanente de sua passagem por Kansas City, tendo aplicado somas vultosas para dourar o domo da catedral restaurada no centro da cidade.

Cody passou a vigiar os movimentos diários dos padres e freiras que suspeitava de deslealdade. Dossiês foram reunidos. Interrogatórios secretos de amigos de “suspeitos” tornaram-se uma norma. Nunca se definiu o que tudo isso tinha a ver com o Evangelho de Cristo.

Quando algumas dessas atividades foram denunciadas a Roma pelo clero de Chicago. o Papa Paulo VI ficou preocupado e angustiado. Era mais do que evidente que o membro sênior da Igreja Católica em Chicago já demonstrara, no início dos anos 70, que não tinha condições de presidir a diocese. Apesar disso, imbuido de um estranho senso de prioridades, o Papa ainda hesitava. A paz de espírito de Cody parecia pesar mais que o destino de 2,4 milhões de católicos.

Um dos aspectos mais extraordinários do caso de Cody é que ele controlava, aparentemente sem qualquer consulta a quem quer que fosse, toda a receita da Igreja Católica em Chicago. Um homem são e extremamente inteligente já teria dificuldades para controlar com plena eficiência uma receita anual entre 250 e 300 milhões de dólares. O fato dessa incumbência ser entregue às mãos de Cody desafia qualquer explicação.

Por volta de 1970, os bens da Igreja Católica em Chicago ultrapassavam um bilhão de dólares. Por causa da recusa do Cardeal Cody em publicar um balanço anual fiscalizado, padres de diversas partes da cidade passaram a reter algumas somas, que em tempos mais felizes seriam encaminhadas ao controle do cardeal. Finalmente, em 1971, seis anos depois de iniciar seu domínio despótico, Cody se dignou a divulgar o que passava por uma prestação de contas anual. Foi um curioso balanço. Não revelava os investimentos imobiliários, Não revelava os investimentos em ações. Em relação à receita dos cemitérios, apresentava finalmente uma prova de vida depois da morte. Os lucros eram enormes. Seis meses antes de as cifras serem divulgadas, Cody confidenciara a um assessor que o lucro andava na casa dos 50 milhões de dólares. Quando a prestâção de contas foi divulgada, à cifra caíra pará 36 milhões de dólares. Para um homem que podia estar simultaneamente em Romã, Saigon, Casa Branca, Vaticano e nâ mansão do cardeal em Chicago, desviar cerca de 14 milhões de dólares de receita de cemitérios era brincadeira de criança.

Cerca de 60 milhões de dólares de recursos da paróquia estâvam depositados na chancelaria de Chicago. Cody recusava-se a revelar a quem quer que fosse onde o dinheiro se achava investido ou quem se beneficiava dos juros.

Um dos trunfos pessoais mais notáveis do cardeal era o número de amigos influentes que ele continuamente adquiria dentro da estrutura de poder da Igreja. Seus tempos na Cúria Romana, antes dá guerra, trabalhando inicialmente no Colégio Norte-Americano em Roma e depois na Secretaria de Estado, produziram ricos dividendos para os momentos de necessidade. Cody era um homem que desde cedo soube aproveitar as melhores oportunidâdes. Insinuando-se nas boas graças de Pio XII e do futuro Paulo VI, ele estabeleceu uma formidável base de poder em Romã.

A ligação do Vaticano com Chicago era, no inicio dos anos 70, um de seus vínculos mais importântes com os Estados Unidos. A maior parte dos investimentos do Vaticano S.A. no mercado de ações americano era canalizada pelo Continental de Illinois. Na diretoria do banco, juntamente com David Kennedy, um amigo íntimo de Michele Síndona, estava o padre Jesuíta Raymond C. Bãumhart. As grandes somas que Cody canalizava para Roma tornaram-se um fator importante na política fiscal do Vaticano. Cody podia não ser capaz de controlar seus padres, mas certamente sabia como lidar com questões de dinheiro, Quândo o bispo que controlava a diocese de Reno fez alguns “investimentos infelizes” e houve um totâl colapso financeiro, o Vaticano pediu a Cody que o socorresse. Cody ligou para seus amigos banqueiros e o dinheiro foi prontamente providenciado.

Ao longo dos anos, a amizade entre Cody e Marcinkus tornou-se particularmente intima; tinham muita coisa em comum, muitos interesses envolvidos. Em Chicago, com sua vasta população de origem polonesa involuntariamente ajudando-o, Cody começou a desviar centenas de milhares de dólares para Marcinkus, no Banco do Vaticano, através do Continental Illinois, Marcinkus encaminhava o dinheiro para os cardeãis na Polônia.

O cardeal cuidava de garantias adicionais, distribuindo a riqueza de Chicago por determinados setores da Cúria Romana. Quando estava na cidade, e fez mais de uma centena de viagens a Roma, distribuia presentes caros pelas pessoas que mais lhe poderiam ser úteis, um isqueiro de ouro para este monsenhor, um relógio caro para aquele bispo.

Mas as queixas que continuavam a chegar a Roma superavam os presentes caros. Na Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, que age como a polícia do Vaticano em questão de ortodoxia doutrinária e moralidade clerical, a pilha de cartas crescia continuamente. Vinham não apenas de padres e freiras de Chicago, mas também de homens e mulheres dos mais diversos níveis. O Arcebispo Jean Hamer, OP, na direção da Congregação, analisou o problema. Entrar em ação contra um padre é relativamente fácil. Depois da devida investigação, a Congregação recorre ao bispo relevante, solicitando que o padre seja removido da área de controvérsia. Mas a quem recorrer quando a ação proposta é contra o cardeal?

A União dos Padres condenou Cody publicamente e declarou que ele mentia. Acabaram aprovando um voto de censura contra ele, Apesar disso, Roma permaneceu em silêncio,

No inicio de 1976, o Arcebispo Hamer não era o único membro destacado da Cúria Romana que conhecia os problemas que a conexão de Chicago estava causando. Os Cardeais Benelli e Baggio, independentemente a princípio e depois em conjunto, haviam chegado à conclusão de que Cõdy devia ser substituído.

Foi encontrada uma fórmula depois de longas conferências com Paulo VI. Numa das numerosas viagens de Cõdy a Roma, na primavera de 1976, Benelli ofereceu-lhe um posto na Cúria Romana, Ele teria um título maravilhoso, mas absolutamente nenhum poder. Reconhecia-se que Cody era ambicioso e achava que possuía talento para subir além do controle de Chicago. O plano do cardeal era tornar-se Papa. E indicativo da arrogância de Cody o fato de um homem que causara tanta confusão e transtorno em Chicago pensar seriamente que tinha possibilidades de alcançar o Pontificado. Com essa ambição, ele teria o maior prazer em trocar Chicago pelo controle de uma das Congregações da Cúria que distribuíam dinheiro às dioceses necessitadas do mundo inteiro. Cody raciocinou que poderia comprar votos suficientes para ascender ao trono de Roma quando surgisse a oportunidade. Benelli sabia disso e fora o motivo pelo qual oferecera o cargo. Mas não era o que Cody queria. Ele recusou. Era necessário encontrar outra solução.

Em janeiro de 1976, poucos meses antes da confrontação Beneldi Cody, uma delegação de Chicago visitou Jean Jadot, o núncio apostólico em Washington. Jadot informou que Roma estava cuidando da situação. A medida que o ano prosseguia sem qualquer solução, a batalha em Chicago recomeçou. A imagem pública de Cody se tornara a essa altura, tão lamentável que ele contratou uma agência de relações públicas de Chicago, à custa da Igreja, numa tentativa de obter uma cobertura favorável dos meios de comunicação.

Os irados padres e freiras começaram a se queixar outra vez a Jadot em Washington. Ele aconselhou paciência, prometendo:

— Roma encontrará a melhor solução. Mas vocês devem suspender os ataques públicos. Deixem o problema se aquietar. Roma então cuidará de tudo com a discrição necessária,

O clero aceitou as ponderações. As críticas públicas foram atenuadas. Mas logo foram reacendidas pelo próprio Cody, que decidiu fechar diversas escolas da cidade. Baggio aproveitou essa questão para outra tentativa de persuadir o Papa Paulo VI a agir de forma decisiva. O conceito de firmeza do Papai foi escrever uma carta formal a Cody, pedindo uma explicação para o fechamento das escolas. Cody ignorou a carta e gabou-se publicamente por isso.

Em Chicago, impedidos pela inatividade do Vaticano, os oponentes enviaram mais cartas a Roma, Havia novas acusações, apoiadas por depoimentos juramentados, e registros de irregularidades financeiras. Muitas evidências indicavam que o comportamento de Cody em outra área também deixava a desejar. Envolvia a sua amizade com uma mulher chamada Helen Dolan Wilson.

Cody dissera a seu pessoal na Chancelaria que Helen Wilson era sua parente. A natureza exata do parentesco variava; mas, de um modo geral, ela era descrita como prima. A fim de explicar a vida elegantede Helen Wilson, as roupas sempre na última moda, as viagens constantes, o apartamento luxuoso, o cardeal espâlhou que a prima fora deixada "muito bem de vida" pelo falecido marido. As acusações encaminhadas a Romã eram de que Cõdy e Helen Wilson não tinham qualquer parentesco, que o marido, de quem ela se divorciara há muito tempo, estava vivo na ocasião em que o cardeal o declarara morto e que, ainda por cima, quando o ex-marido morreu, em maio de 1969, não deixou testamento e seu único bem terreno, um carro de oito anos, no valor de 150 dólares, ficou para a segunda esposa.

As acusações, apresentadas a Roma em termos confidenciais, incluíam provas de que a amizade de Cody com Helen Wilson era antiga, ele fizera um seguro de vida no valor de 100 mil dólares indicando-a como beneficiária, e o registro de emprego dela na Chancelaria de Chicago fora falsificado pelo cardeal para permitir-lhe obter uma pensão maior. A pensão se baseava em 24 anos de trabalho para a diocese, o que era comprovadamente falso. Havia também provas de que Cody dera à amiga a quantia de 90 mil dólares, a fim de que ela pudesse comprar uma casa na Flórida. O Vaticano foi lembrado de que Helen Wilson acompanhara Cody a Roma quando ele fora elevado a cardeal, mas a verdade é que muitas outras pessoas integravam a sua comitiva. Ao contrário de Helen Wilson, no entanto, as outras não participavam da direção da diocese de Chicago, não decidiam os móveis e a decoração da residência do cardeal. Foi também alegado que Cody desviara centenas de milhares de dólares dos fundos dá Igreja para essa mulher.

Como se tudo isso não fosse suficiente, as acusações ainda enumeravam as vultosas quantias de seguros diocesanos encaminhadas para David. o filho de Helen. David Wilson começara a se beneficiar com a generosidade de "Tio" John já em St. Louis, em 1963, À medida que o cardeal subia, o negócio de seguros prosperava. Foi alegado que as comissões que David Wilson ganhara, aparentemente monopolizando os seguros da Igreja, controlados por Cody, ultrapassavam os 150 mil dólares.

Baggio estudou cuidadosamente a lista longa e detalhada. Houve investigações. O Vaticano é incomparável no negócio de espionagem. Basta se considerar o número de padres e freiras existentes no mundo, todos devendo fidelidade a Roma. As respostas chegaram ao Cardeal Baggio, confirmando: as acusações eram procedentes. Era agora o final de junho de 1978.

Em julho de 1978, o Cardeal Baggiõ tornou a discutir o problema do Cardeal Cody com o Papa Paulo VI, que acabou aceitando que Cody devia ser substituído. Ele insistiu, porém, que isso devia ser feito com compaixão, de uma maneira que permitisse a Cody manter as aparências. Mais importante ainda, devia ser feito de maneira a evitar qualquer publicidade escandalosa. Ficou combinado que Cody seria informado que devia aceitar uni coadjutor, um bispo que dirigiria a diocese, para todos os efeitos práticos. Oficialmente, seria anunciado que isso acontecia por causa dos problemas de saúde de Cody, que realmente existiam. Cody teria permissão para continuar como titular da diocese de Chicago até alcançar a aposentadoria compulsória, aos 75 anos, em 1982.

Munido com o édito papal, o Cardeal Baggio prontamente articulou sua viagem, fez as malas e seguiu para o Aeroporto Fiumicino, de Roma, Ali chegando, foi informado de que o Papa desejava lhe falar antes que voasse para Chicago.

Paulo mais uma vez voltara atrás. Disse a Baggio que o plano de colocar um coadjutor em Chicago para assumir o poder só poderia ser executado se Cody concordasse, Consternado, Baggio suplicou:

— Posso insistir, Santo Padre?

— Não, não pode. O plano só deve ser executado se Sua Eminência concordar.

Um irado e frustrado Cardeal Baggio voou para Chicago.

As redes de espionagem transmitem as informações para um lado e outro. O Cardeal Cody tinha as suas fontes na Cúria Romana, O elemento surpresa, com que Baggio esperava desconcertar Cody, se perdera um dia antes de sua reunião crucial com o Papa. Cody estava pronto e esperando.

A maioria dos homens na situação de Cody se submeteria a uma pequena auto-análise, talvez uma consideração dos acontecimentos que, ao longo dos anos, haviam levado aquele Papa tão relutante à conclusão angustiante de que o poder que o cardeal de Chicago detinha, no interesse de todos, devia ser entregue a outro. Sempre atencioso com os sentimentos do homem que desejava substituir, o Papa até providenciara para que o motivo da viagem de Baggio a Chicago fosse um segredo. Oficialmente, ele estava seguindo para o México, a fim de cuidar das providências finais para a Conferência de Puebla. Mas o Cardeal Cody em nenhum momento levou em consideração esses melindres.

A confrontação ocorreu na residência do cardeal, na área do seminário em Muridelein. Baggio apresentou as provas. Mostrou que, ao dar presentes em dinheiro a Helen Wilson, o cardeal incluira quantias que pertenciam à Igreja. Além disso, a pensão que concedera à sua amiga era indevida. A investigação do Vaticano revelara uma variedade de inconveniências, que certamente acarretariam descrédito para a Igreja Católica, se chegassem ao conhecimento público.

Cody estava longe de se mostrar arrependido, enquanto a confrontação rapidamente evoluia para uma discussão aos gritos. Pôs-se a falar de suas vultosas contribuições a Romã, todo o dinheiro que despejara no Banco do Vaticano para ser usado na Polônia, as doações que fizera ao Papa durante as suas visitas ad limina (as visitas e relatórios obrigatórios a cada cinco anos)... não os míseros poucos milhares de dólares que os outros levavam, mas centenas de milhares de dólares. Por toda a área do seminário podia-se ouvir os gritos dos dois Príncipes da Igreja. Cody se manteve intransigente. Outro bispo só dirigiria a diocese "por cima do meu cadáver". Ao final, como uma agulha enguiçada num disco, ele só podia pronunciar insistentemente uma única frase:

— Não renunciarei ao poder em Chicago.

Baggio foi embora, temporariamente derrotado. Um Cody desafiante, que se recusava a aceitar um coadjutor, era uma total violação das leis canônicas. Mas era inconcebível para Paulo que o público soubesse que o cardeal de uma das mais poderosas dioceses do mundo estava desafiando abertamente a autoridade papal. O Papa toleraria Cõdy até o final de seus dias, ao invés de suportar a alternativa. Para Paulo, os dias de tolerância forarri poucos. Uma semana depois de receber o relatório de Baggio, o Papa Paulo VI morreu.

Em meados de setembro, Albino Luciani já estudara em profundidade o problema de Cody. Reuniu-se com o Cardeal Baggio e discutiu o assunto. Falou das implicações da crise com Villot, Benelli, Felici e

Casaroli. A 23 de setembro, teve outra reunião longa com o Cardeal Baggio. Ao final, comunicou a Baggio que lhe falaria de uma decisão nos próximos dias.

Em Chicago, pela primeira vez em sua longa e turbulenta história, o Cardeal Cody começou a sentir-se vulnerável. Depois do Conclave, ele partícularmente não dera a menor importância ao italiano tranquilo que sucedera a Paulo.

— Tudo continuará a mesma coisa — declarara Cody a um dos seus amigos íntimos na Cúria.

Era justamente o que Cõdy queria, pois assim continuaria a mandar e desmandar em Chicago. Agora, no entanto, as notícias de Roma indicavam que ele subestimara seriamente o novo Papa. A medida que setembro de 1978 se aproximava do fim, John Cody convenceu-se de que Luciani agiria onde Paulo permanecera inativo. Os amigos de Cody informaram-no que o novo Papa, com toda certeza, levaria sua decisão até o fim, qualquer que fosse. Citaram muitos exemplos da vida de Luciani que revelavam uma excepcional força interior.

Na mesa de trabalho de Luciani estava um dos poucos bens pessoais que ele estimava. Uma fotografia. Originalmente se encontrava numa moldura velha e escalavrada, Durante a sua permanência em Veneza, um paroquiano agradecido mandara remontar a fotografia numa moldura de prata, cravejada com pedras semipreciosas. A fotografia era dos pais, tendo ao fundo as Dolomitas, cobertas de neve. Nos braços da mãe estava a bebê Pia, agora uma mulher casada, com seus próprios filhos. Durante o mês de setembro de 1978, seus secretários observaram que o Papa, em diversas ocasiões, parecia perdido em pensamentos, enquanto contemplava a fotografia. Era uma lembrança de tempos mais felizes, quando homens como Cody, Marcinkus, Calvi e os outros não perturbavam sua tranquilidade. Houvera então tempo para o silêncio e para pequenas coisas. Agora, Luciani tinha a impressão de que nunca encontrava tempo suficiente para os aspectos mais importantes de sua vida. Estava isolado de Canale e até mesmo de sua família. Ainda conversava ocasionalmente pelo telefone com Edoardo e Pia, mas as visitas inesperadas haviam acabado para sempre. A máquina do Vaticano cuidava disso. Até mesmo Diego Lorenzi tentava afastar Pia quando ela telefonava. Ela queria levar alguns pequenos presentes, lembranças do norte.

— Deixe no portão — disse Lorenzi. — O Papa está muito ocupado para recebê-la.

Luciani ouviu essa conversa e pegou o telefone.

— Venha me visitar, Não tenho tempo, é verdade, mas darei um jeito.

Almoçaram juntos. Tio Albino gozava de excelente saúde e parecia muito animado. Durante a refeição, comentou seu novo papel:

— Se soubesse que um dia me tornaria Papa, eu teria estudado mais. E muito difícil ser Papa.

Pia compreendia como o trabalho podia ser árduo e difícil, e tudo agravado pela obstinação da Cúria. Luciani desejava tratar Roma como sua nova paróquia, passeando pelas ruas como costumava fazer em Veneza e suas outras dioceses. Mas havia problemas para um Chefe de Estado se comportar assim. A Cúria declarou categoricamente que a idéia não apenas era inconcebível, mas também inexeqúivel. A cidade mergulharia num caos constante se o Santo Padre saísse a perambular pelas ruas. Luciani abandonou a idéia, mas apenas por uma versão modificada. Comunicou aos homens do Vaticano que desejava visitar todos os hospitais, igrejas e centros de refugiados em Roma, gradativamente conhecendo e circulando por todos os setores do que considerava a sua paróquia. Para um homem determinado a ser um Papa pastoral, a realidade em sua porta constituía um poderoso desafio.

Roma possui uma população católica de dois milhões e meio de habitantes. Deveria estar produzindo pelo menos 70 novos padres por ano. Quando Luciani tornou-se Papa, produzia apenas seis. A vida religiosa de Roma era mantida pela importação de clérigos. Muitas partes da cidade eram na verdade pagãs, com o comparecimento às igrejas sendo inferior a três por cento da população. Ali, no coração da fé, o ceticismo era grande.

A cidade que se tornara agora o lar de Albino Luciani também abrigava o prefeito comunista Cardo Argan, um prefeito comunista numa cidade em que o maior produto é a religião e cuja indústria só encontra equivalente no índice de criminalidade, Um dos novos títulos que Luciani adquirira era o de Bispo de Roma, uma cidade que não contava com um bispo, no mesmo sentido de Milão, Veneza, Florença ou Nápoles, há mais de um século. E isso transparecia.

Enquanto Pia almoçava com o Papa, Dom Diego estava envolvido numa discussão prolongada com um elemento da Cúria, que se recusava a sequer considerar o desejo papal de visitar diversas partes de Roma. Luciani interrompeu a conversa com Pia para dizer a seu secretário:

— Diga a ele que tem de ser feito, Dom Diego. Diga que o Papa assim deseja.

Lorenzi transmitiu a determinação papal, mas a recusa persistiu. Virando-se para o Papa, ele informou:

— Eles dizem que nâo é possível, Santo Padre, porque nunca foi feito antes.

Pia observava, fascinada, enquanto prosseguia a partida de tênis do Vaticano, Luciani acabou pedindo desculpas à sobrinha pela interrupção e disse a seu secretário que daria as instruções necessárias a Villot. E acrescentou para Pia, sorrindo:

— Se a Cúria Romana permitir, seu tio espera visitar o Líbano antes do Natal.

Ele discorreu longamente sobre aquele país conturbado e seu desejo de interferir antes que o barril de pólvora explodisse. Depois do almoço, quando a sobrinha estava de partida. Luciani insistiu em lhe dar de presente uma medalha que ganhara da mãe do Presidente do México. Poucos dias depois, a 15 de setembro, recebeu o irmão Edoardo para jantar. Essas duas reuniões familiares estavam destinadas a ser as últimas que Albino Luciani teria.

Enquanto o Pontificado de Albino Luciani prosseguia, aumentava o abismo entre o papa e os observadores profissionais do Vaticano, na proporção direta em que se tornavam mais estreitos os laços e relacionamentos entre o novo Papa e o público em geral. A perplexidade dos profissionais era compreensível.

Confrontados com um cardeal não-curial, que aparentemente carecia de reputação internacional, os profissionais concluíram que observavam o primeiro de uma nova espécie de Papa, um homem deliberadamente escolhido para garantir que houvesse uma redução de poder, um papel menos significativo para o Pontificado. Não pode haver muita dúvida de que o próprio Luciani encarava o seu papel nesses termos reduzidos. O problema essencial nessa visão de um Pontificado menos significativo era o próprio homem. A essência de Albino Luciani, sua personalidade, inteligência e talentos extraordinários fizeram com que o público em geral conferisse ao novo Papa uma posição de maior importância, aceitando o que ele tinha a dizer como algo de significado mais profundo. A reação pública a Luciani demonstrava claramente uma necessidade profunda de uma atuação papal ampliada, exatamente o inverso do que tencionavam muitôs cardeais. Quanto mais Luciani se mostrava humilde, mais exaltado se tomava para os fiéis.

Muitos que só haviam conhecido Luciani em seus dias em Veneza estavam profundamente surpresos com o que consideravam a mudança no homem. Em Vittorio Veneto, Belluno e Canale, no entanto, não houve qualquer surpresa. Aquele era o verdadeiro Albino Luciani. A simplicidade, o senso de humor, a ênfase no catecismo.., esses eram os elementos integrantes do homem.

A 26 de setembro, Luciani podia olhar para trás e contemplar com satisfação o seu primeiro mês no novo cargo. Fora um mês repleto de impactos poderosos. Suas investigações sobre atividades corruptas e desonestas lançaram os responsáveis no medo mais profundo. Sua impaciência com a pomposidade da Cúria causara indignação. Em

diversas ocasiões, ele abandonara os.discursos escritos oficialmente e se queixara em público:

— O estilo é curial demais.

Ou comentava:

— Está untuoso demais.

A Rádio Vaticano e o Osservatore Romano raramente reproduziam as suas palavras literalmente, mas o público as ouvia e o mesmo acontecia com outros meios de comunicação. Tomando emprestada uma frase de São Gregório, o Papa comentou que, ao elegê-lo, "o imperador queria um macaco para se transformar em leão". Lábios se contraíram no Vaticano, enquanto bocas se abriam em sorriso pelo público. Ali estava um "macaco" que, no transcorrer de seu primeiro mês de Pontificado, falara-lhes em latim, italiano, francês, inglês, alemão e espanhol. Como Winston Churchill poderia ter comentado, "que macaco!"

A 7 de setembro, durante uma audiência particular com Vittore

Branca, às 8:00 da manhã, um horário que causou consternação na

Cúria, o amigo manifestou sua preocupação pelo peso do Pontificado.

Ao que Luciani respondeu:

É verdade, claro que sou muito pequeno para grandes coisas. Só posso repetir a verdade e o chamado Evangelho, como fazia na igrejinha da minha terra. Basicamente, os homens precisam disso. Sou o guardião das almas, acima de tudo. Entre o padre da paróquia de Canale e mim só há diferença no número de fiéis. A missão, no entanto, é a mesma:

lembrar Cristo e sua palavra.

Mais tarde, nesse mesmo dia, reunido com todos os padres de Roma, ele falou da necessidade de meditação. Suas palavras têm um significado profundamente pungente quando se considera quão pouco tempo e espaço um novo Papa dispõe para meditação.

Fiquei comovido na estação ferroviária de Milão ao ver um carregador dormindo na maior felicidade, com a cabeça num saco de carvão e as costas numa pilastra. Os trens apitavam ão partirem, as rodas guinchavam ao chegarem. Os altofalantes constantemente interrompiam. As pessoas passavam ruidosamente. Mas o homem continuava a dormir e parecia dizer: "Façam o que devem, mas eu preciso de alguma paz. Nós, sacerdotes, devemos fazer a mesma coisa. Há um movimento contínuo ao nosso redor. Pessoas falando, jornais, emissoras de rádio e televisão. Com a disciplina e moderação de sacerdotes, devemos dizer: "Além de determinados limites, vocês não existem para mim. Sou um sacerdote do Senhor. Preciso de um pouco de silêncio para a minha alma. Eu me distancio de vocês para estar com meu Deus por algum tempo."

O Vaticano registrava os seus discursos nas audiências gerais, quando ele falou, em sucessivas quartas-feiras, em Fé, Esperança e Caridade. Mas a súplica de Luciani para que essas virtudes fossem demonstradas, por exemplo, em relação aos viciados em tóxicos, foi ignorada pela Cúria, que controlava os meios de comunicação do Vaticano.

A 20 de setembro, quando ele pronunciou a frase memorável que era errado acreditar Ubi Lenin, ibi Jerusalem (Onde Lenin está, há Jerusalém), a Cúria anunciou que o Papa estava rejeitando a "teologia da libertação". Não estava. Além disso, a Rádio Vaticano e o Osservatore Romano deixaram de registrar a qualificação importante de Luciani, de que entre a Igreja e a salvação religiosa, por um lado, e o mundo e a salvação humana, por outro, "há alguma coincidência, mas não podemos fazer uma equação perfeita".

No dia 23 de setembro, um sábado, a investigação de Luciani sobre o Vaticano S. A. estava bastante adiantada, Villot, Benelli e outros haviam fornecido relatórios sobre os quais o Papa meditara, Nesse dia, ele deixou o Vaticano pela primeira vez, a fim de tomar posse de sua catedral como o Bispo de Roma. Apertou a mão do Prefeito de Roma, Argan, trocaram discursos. Depois da missa que se seguiu, com a maioria da Cuna presente, o Papa abordou por diversas vezes os problemas intemos com que se defrontava. Referindo-se aos pobres, o setor da população que mais falava ao seu coração, Luciani disse:

Como afirmou o diácono romano Lawrence, esses são os verdadeiros tesouros da Igreja. Mas devem ser ajudados por aqueles que podem, pelos que têm mais e são mais, sem serem humilhados e ofendidos pelas riquezas ostensivas, pelo dinheiro esbanjado em coisas inúteis e não investido em empreendimentos que beneficiem a todos, na medida do possível.

Mais adiante, no mesmo discurso, ele virou-se e olhou diretamente para os homens do Banco do Vaticano, reunidos a um lado, passando a falar sobre as dificuldades de guiar e governar.

Embora tenha sido bispo de Vittorio Veneto e em Veneza por mais de 20 anos, reconheço que não aprendi o trabalho muito bem. Em Roma, eu me colocarei na escola de São Gregório, o Grande, que escreveu que (o pastor) deve, com compaixão, estar próximo de cada um que lhe está sujeito; independente de seu posto, deve se considerar no mesmo nível que o rebanho, mas sem temer exercitar os direitos de sua autoridade contra os iníquos...

Sem conhecimento do que acontecia no Vaticano, o público limitou-se a assentir sabiamente. Mas a Cúria sabia exatamente a que o Papa se referia. Era um pronunciamento elegante e indireto, ao melhor estilo do Vaticano, sobre os eventos futuros.

As mudanças pairavam no ar, e na aldeia do Vaticano havia especulações frenéticas. O Bispo Marcinkus e pelo menos dois de seus assessores mais chegados, Mennini e De Strobel, estavam para cair. Isso era considerado um fato inevitável. O que mais agitava as mentes curiais era que havia também rumores de outras substituições.

No domingo, 25 de setembro, um visitante particular dos aposentos papais foi identificado por um monsenhor atento como sendo Lino Marconato. O excitamento na aldeia alcançou um novo auge. Marconato era diretor do Banco San Marco. Sua presença nos aposentos papais indicava que já fora encontrado um sucessor para o Banco Ambrosiano?

Na verdade, porém, a reunião foi sobre questões bancárias menos exóticas. O Banco San Marco tomara-se o banco oficial da diocese de Veneza depois que Luciani, furioso, encerrara todas as contas no Banca Cattolica Veneto. Agora, Luciani precisava encerrar suas contas pessoais no San Marco, sabendo que nunca mais voltaria a residir naquela cidade. Marconato encontrou o seu quase ex-cliente na melhor saúde. Conversaram cordialmente sobre Veneza, Luciani deu instruções para que o dinheiro em sua conta de Patriarca fosse transferido para o seu sucessor.

A preocupação com as mudanças iminentes era intensa. Em muitas cidades. Por muitas pessoas.

Outro que tinha um interesse velado no que Luciani podia estar prestes a fazer era Michele Sindona. A batalha de quatro anos de Sindona pára evitar a extradição dos Estados Unidos para a Itália encaminhava-se para o climax em setembro de 1978. Pouco antes, em maio desse mesmo ano, um juiz federal americano decidira que o siciliano, que se tornara cidadão suíço, deveria ser recambiado a Milão, a fim de enfrentar o julgamento pelo que fizera. Em sua ausência, Sindona fora condenado a três anos e meio de prisão, mas sabia que essa sentença pareceria clemente depois que os tribunais italianos acabassem com ele. Apesar da investigação federal, ele ainda se achava livre de qualquer acusação nos Estados Unidos. O colapso do Franklin Bank fora seguido pela prisão de diversos homens, sob várias acusaçoes, mas em setembro de 1978 O Tubarão permanecia incólume. Seu maior problema na ocasião estava na Itália.

A bateria de advogados de um milhão de dólares persuadira os tribunais americanos a não decretarem a extradição, até que os procuradores federais provassem que havia provas concretas contra Sindona das diversas acusações formuladas em Milão.

De maio em diante, os procuradores se empenhavam ao máximo para obter essas provas. Sindona, ajudado pela Máfia e por seus companheiros da P2, empenhava-se com igual afinco para dar um sumiço nas provas. Quando setembro de 1978 se aproximava do fim, ele ainda tinha muitos "problemas".

O primeiro era o depoimento prestado no processo de extradição por uma testemunha, Nicola Biase, um antigo empregado de Sindona. Seu depoimento era considerado perigoso. Sindona procurou tomá-lo seguro". Discutiu o problema com a farmília mafiosa Gambino e um pequeno contrato foi fechado. Não chegava a ser particularmente sinistro: Biase, a mulher, a família e seu advogado seriam ameaçados de morte. Se sucumbissem à ameaça e Biase refutasse o depoimento, tudo ficaria por aí. Mas se Biase se recusasse a cooperar com a Máfia, então a família Gambino e Sindona planejavam "revisar" a situação. O que não pressagiava nada de bom para a saúde de Biase. O contrato de menos de mil dólares seria trocado por outro mais condizente. Luigi Ronsisvaíle e Bruce McDowall foram os escolhidos para executar o contrato. Ronsisvaíle é um assassino profissional.

Outro contrato também foi discutido com Ronsisvaíle, A Máfia informou-o que Michele Sindona queria a morte do promotor federal John Kenney.

Nada demonstra tão claramente a mentalidade de Michele Sindona quanto o contrato para liquidar John Kenney. O promotor que atuava no processo de extradição, era o homem que comandava a pressão do governo americano para acabar com a permanência de Sindona nos Estados Unidos. Sindona estava convencido de que o problema terminaria se Kenney fosse eliminado. Funcionaria como uma advertência ao governo de que ele, Michele Sindona, não admitia mais a pressão. A investigação seria suspensa. Não haveria mais irritantes comparecimentos ao tribunal, não haveria mais tentativas absurdas para enviá-lo de volta à Itália, O processo de pensamento neste caso é cem por cento da Máfia siciliana. E uma filosofia que funciona repetidamente na Itália. Faz parte essencial da Solução Italiana. As autoridades podem ser intimidadas e de fato o são. Os investigadores que substituem um colega assassinado não se mostram tão ansiosos em esclarecer um caso. Sindona raciocinou que qualquer coisa que funcionava em Palermo também daria certo em Nova York.

Luigi Ronsisvaíle, embora fosse um assassino profissional, relutou em aceitar o contrato. O pagamento de 100 mil dólares era ótimo, mas Ronsisvaíle. compreendendo o sistema americano muito mais do que Sindona, achava que não teria qualquer oportunidade de gastá-lo. Se Kenney fosse assassinado, haveria ondas, a repercussão seria tremenda. Ronsisvaíle começou a procurar alguém, por conta da família Gambino, que julgasse ter possibilidades de sobrevivência depois de assassinar um promotor federal americano.

Sindona e seus associados concentraram-se no problema seguinte, Cardo Bordoni, ex-associado nos negócios e amigo intimo de Sindona. Bordorti já enfrentava diversas acusações pela falência do Franklin Bank. Poderia aceitar um acordo para redução de sua pena, em troca de um depoimento fatal contra O Tubarão. Ficou decidido que o tratamento previsto para Nicola Biase, sua família e seu advogado seria também aplicado a Carlo Bordoni.

Os problemas restantes de Sindona estavam na Itália, especialmente no Vaticano. Se Marcinkus caísse, Calvi também estaria perdido. Se Calvi afundasse, Sindona também seria arrastado. A luta de quatro anos para evitar a extradição seria encerrada com a sua derrota. Um homem que julgava ser possível resolver seus problemas nos Estados Unidos com o assassinato de um promotor federal não pensaria que a grande ameaça com que se defrontava na Itália poderia ser eliminada com a morte de um Papa?

Sindona, Calvi, Marcinkus e o Cardeal Cody: a 28 de setembro de 1978, todos esses homens seriam destruidos se Albino Luciani resolvesse prosseguir nos cursos de ação que já indicara. Outros que seriam diretamente afetados: Licio Gelli e Umberto Ortolani, para esses lideres da P2 perder Calvi seria para a Loja Maçônica perder seu pagador. Em 28 de setembro, um outro nome foi acrescentado aos que seriam seriamente afetados pelas ações propostas por Luciani. O novo nome era o do Cardeal Jean Villot, Secretário de Estado do Vaticano.

Na manhã de 28 de setembro, depois de tomar café com leite e comer um croissant, Luciani já estava á sua mesa de trabalho antes das oito horas da manhã; Havia muito o que fazer.

O primeiro problema que ele enfrentou foi o Osservatore Romano. Durante o mês anterior, ele tivera motivos para se queixar do jornal em diversas ocasiões. Depois de vencida a batalha inicial contra o uso do real "nós", com que o jornal insistia em substituir o uso mais humilde da primeira pessoa do singular pelo Papa, cada nova edição diária proporcionava mais motivos de irritação para Luciani. O jornal aderia rigorosamente aos discursos escritos pela Cúria e ignorava os comentários pessoais que o Papa acrescentava. Até mesmo se queixava quando jornalistas italianos reproduziam acuradamente o que o Papa dissera, em vez de se limitarem ao que o Osservatore Romano achava que ele deveria ter dito. Havia agora novos problemas, de natureza muito mais séria.

Diversos cardeais da Cúria descobriram, horrorizados, que pouco antes do Conclave, Albino Luciani fora entrevistado a respeito do nascimento de Louise Brown, conhecida como "primeiro bebê de proveta". A entrevista se realizara três dias antes da morte do Papa Paulo VI, mas suas opiniões só se tornaram geralmente conhecidas depois que a matéria saiu em Prospettive nel Mondo, depois da eleição. Os partidários da linha dura na questão do controle da natalidade ficaram consternados ao lerem as opiniões do homem que era agora o Papa.

Luciani começara cautelosamente, deixando bem claro que estava expressando apenas a sua opinião pessoal, já que, como todo mundo "esperava para saber quais seriam os autênticos ensinamentos da Igreja depois que os experts fossem consultados".. Os eventos subsequentes criaram uma situação em que os ensinamentos autênticos da Igreja, naquele ou em qualquer outro assunto, estavam totalmente dentro da competência de Luciani.

Na entrevista, Luciani manifestou um entusiasmo comedido pelo nascimento. Estava preocupado com a possibilidade de "fábricas de bebês", uma apreensão profética, tendo em vista os acontecimentos atuais na Califórnia, onde mulheres fazem filas para serem fecundadas pelo esperma de ganhadores do Prêmio Nobel.

Numa mensagem pessoal aos pais de Louise Brown, Albino Luciani disse:

Seguindo o exemplo de Deus, que deseja e ama a vida humana, eu também envio os meus melhores votos de felicidades para a criança. Quanto aos pais, não tenho o direito de condená-los; subjetivamente, se agiram com boas intenções e de boa fé, talvez até tenham um grande mérito aos Qlhõs de Deus pelo que decidiram e pediram aos médicos que fizessem.

Depois, ele chamou a atenção para um pronunciamento de Pio XII, que poderia pôr o ato de fecundação artificial em conflito com a Igreja. Considerando a opinião de que cada individuo tem o direito de escolher por si mesmo, manifestou uma posição que estava na própria essência de sua atitude em relação a muitos problemas morais:

Concordo que a consciência individual deve ser sempre seguida, quer ordene ou proíba; o indivíduo, porém, deve sempre procurar desenvolver uma consciência bem formada.

Os setores do Vaticano que acreditam que a única consciência bem formada é aquela moldada exclusivamente por eles começaram a se pronunciar. Houve reuniões secretas. Os que compareciam a essas reuniões achavam que era evidente que se precisava deter Luciani. Falaram da "traição a Paulo", o que para certas mentes romanas refinadas é uma maneira elegante de dizer "Eu discordo".

Quando notícias do cauteloso diálogo entre a Secretaria de Estado do Vaticano e o Departamento de Estado americano começaram a vazar, esse grupo resolveu entrar em ação. A informação subsequente de que uma delegação americana envolvida com o controle da natalidade teria uma audiência com o Papa acrescentou uma urgência adicional aos homens no Vaticano que consideravam que a Humanae Vitae deveria ser a última palavra sobre o assunto.

A 27 de setembro, apareceu na primeira página do Osservatore Romano um longo artigo intitulado "Humanae Vitae e a Moral Católica". Era do Cardeal Luigi Ciappi, OP, teólogo do círculo papal. O Cardeal Ciappi fora o teólogo pessoal de Paulo VI e Pio XII. Com um autor assim, o artigo parecia ter a aprovação pessoal do novo Papa. Fora publicado antes em Laterano, para "celebrar" o 10° aniversário da Humanae Vitae. Sua republicação era uma tentativa deliberada de bloquear qualquer mudança na questão do controle da natalidade que Albino Luciani pudesse desejar. O artigo é uma sucessão de louvores à Humanae Vitae. Há muitas citações de Paulo VI, mas nenhuma palavra de Luciani confirmando que partilhava as opiniões de Paulo ou Ciappi. O motivo para isso é simples, Ciappi não discutira o artigo com Luciani. Na verdade, a 27 de setembro de 1978, o Cardeal Ciappi ainda aguardava uma audiência particular com a novo Papa. Luciani só tomou conhecimento do longo artigo e das opiniões que continha quando o leu no jornal. Na segunda página, ele encontrou outro esforço dá Cúria para solapar a sua posição: mais um artigo, em três colunas, intitulado "O Risco da Manipulação na Criação da Vida". Era uma condenação dogmática da "bebê de proveta" Louise Brown e de toda fertilização artificial.

Também não continha qualquer referência a Luciani. A Cúria sabia muito bem que, apesar de todas as alegações do Osservatore Romano de ser apenas semi-oficial, tais artigos seriam encarados pelo mundo como sendo posições do novo Papa. A batalha começara abertamente,

A 28 de setembro, pouco depois de oito horas da manhã, o Papa telefonou para seu Secretário de Estado, Jean Villot. Exigiu uma explicação completa sobre a publicação dos dois artigos. Telefonou depois para o Cardeal Felici, em Pádua, onde faria retiro espiritual.

Luciani passara a usar Felici, cada vez mais, como uma caixa de ressonância para suas idéias. Sabia que suas opiniões divergiam em muitas coisas, mas sabia também que Felici reagiria com absoluta franqueza e honestidade. O Papa estava igualmente consciente de que poucos conheciam tanto quaonto Felici, como Decano do Sacro Colégio, as maquinações da Cúria.

Luciani manifestou a sua irritação pelos dois artigos e depois disse:

— Lembra-se que há alguns dias avisou-me de que a Cúria desejava conter minha exuberância natural?

— Foi apenas um palpite, Santidade.

— Talvez possa fazer a gentileza de retribuir o cumprimento em seu nome. Avise ao pessoal desse jornaízinho para conter suas opiniões sobre essas questões. Os editores são como os Papas. Nenhum deles é indispensável.

Depois de marcar um encontro com Felici para mais- tarde, naquele mesmo dia, Luciani passou ao problema seguinte, a Igreja da Holanda. Cinco dos sete bispos holandeses planejavam assumir uma posição moderada nas questões do aborto, homossexualismo e o emprego de padres casados. Entre os cinco estava o Cardeal Willebrands, o homem que oferecera palavras de conforto a Luciani durante o Conclave. Os cinco tinham a oposição de dois bispos extremamente conservadores, Gijsens, de Roermond, e Simonis, de Rotterdam. Uma reunião na Holanda, em novembro de 1978, prometia ser o campo de batalha que revelaria as divisões profundas ao público holandês. Havia um outro problema, que fora exposto num relatório detalhado ao falecido Papa Paulo VI.

Os jesuítas moviam uma campanha contra o teólogo e professor dominicano Edward Schillebeeckx, famoso no mundo inteiro. Como acontecia com seu contemporâneo suíço Hans Kung, os conservadores desejavam silenciar o que lhes parecia ser as idéias radicais de Schillebeeckx, O temido Index dos Livros Proibidos fora abolido por Paulo VI. Sua morte deixara sem solução o problema de como a Igreja Católica controlaria seus pensadores avançados. No passado, Luciani tomara emprestada uma frase de Hans Kung para condenar os "teólogos de tocaia". Mas esse não era o caso de homens como Kung e Schillebeeckx, que manifestavam apenas um profundo desejo de levar a Igreja de volta a suas origens, uma posição que Albino Luciani aprovava plenamente. Poucos minutos antes das dez horas, Luciani pôs o relatório para o lado e se concentrou em aspectos mais felizes de seu cargo. Uma série de audiências.

Receberia primeiro um grupo que incluia o homem que Luciani promovera à presidência do Cor Unum, Cardeal Bernard Gantin, O Papa ficou radiante com a presença forte e juvenil de Gantin, que na sua opinião representava o futuro da Igreja. Durante a conversa, Luciani comentou:

— E apenas Jesus Cristo que devemos oferecer ao mundo. Além disso, não teríamos razão nem propósito, nunca seríamos escutados.

Outro que teve uma audiência naquela manhã foi Henri de Riedmatten. Quando circularam por Roma, pouco depois do Conclave, notícias de que Luciani escrevera ao Papa Paulo, antes da Humanae Vitae, exortando-o a não confirmar a proibição á anticoncepçáo artificial, fora Riedmatten quem classificara tais rumores de "total fantasia". Sua conversa com o Papa a 28 de setembro foi sobre o seu trabalho como secretário de Cor Unum, mas Luciani advertiu-o a não se precipitar a outras "negativas".

— Meu relatório sobre o controle da natalidade não chegou ao seu conhecimento?

Riedmatten murmurou algumas palavras sobre uma possível confusão.

— Deve-se tomar cuidado, Padre Riedmâtten, para não se manifestar publicamente até que toda a confusão esteja esclarecida. Caso precise de uma cópia do meu relatório, tenho certeza de que se pode providenciar.

Riedmatten agradeceu ao Papa profusamerite. E manteve um silêncio sensato a partir daí, enquanto Luciani discutia os problemas do Líbano com o Cardeal Gantin. Ele informou a Gantin que no dia anterior conversara sobre a projetada visita ao Líbano com o Patriarca Hakin, cuja diocese de rito greco-melquita se estendia não apenas pelo Líbano invadido, mas também pela Síria invasora.

Luciani também recebeu em audiência naquela manhã um grupo de bispos das Filipinas, que fazia a suá visita ad limina. Diante de homens que tinham de enfrentar a realidade cotidiana do Presidente Marcos, Luciani falou de um assunto no fundo de seu coração: a evangelização. Perfeitamente consciente das dificuldades que aqueles homens defrontariam se falasse diretamente contra o Presidente Marcos, o Papa preferiu em vez disso discorrer sobre a importância da evangelização. Lembrou-lhes a visita do Papa Paulo ás Filipinas e disse:

Num momento em que ele resolveu falar sobre os pobres, sobre justiça e paz, direitos humanos, libertação econômica e social, num momento em que ele empenhou a Igreja efetivamente no esforço para atenuar a miséria, não permaneceu e não podia permanecer em silêncio em relação ao "bem maior", que é a plenitude da vida no Reino do Céu.

A mensagem foi claramente compreendida, não apenas pelos bispos, mas também pela família Marcos.

Depois das audiências matutinas, Luciani teve uma reunião com o Cardeal Baggio. Chegara a diversas decisões e agora estava prestes a transmitir duas delas a Baggio.

A primeira era sobre o problema do Cardeal John Cody, de Chicago. Depois de avaliar todos os fatos, Luciani decidira que Cody devia ser afastado, Ele esperava que isso se efetuasse à maneira clássica do Vaticano, sem qualquer publicidade desagradável. Ele disse a Baggio que Cody deveria receber a oportunidade de renunciar por motivos de saúde. Isso não acarretaria comentários adversos da imprensa, porque a saúde de Cody não estava mesmo muito boa, Se Cody se recusasse a renunciar, ao invés de sofrer o tumulto público de um afastamento contra a sua vontade, um coadjutor seria designado. Outro bispo seria escolhido para assumir todo o poder efetivo e dirigir a diocese. Luciani tinha certeza de que, confrontado com essa alternativa, Cody optaria por se retirar com toda dignidade. Se insistisse em continuar, então não haveria outro jeito. Seria destituído de toda e qualquer responsabilidade. Luciani foi bastante claro e objetivo. Não se tratava de um pedido, uma mera sugestão. Um coadjutor seria nomeado se Cody não quisesse sair.

Baggio ficou na maior satisfação, pois o problema finalmente se resolvia. Mas não ficou tão satisfeito com a decisão seguinte que Luciani anunciou. Veneza estava sem um Patriarca. O Papa ofereceu o posto a Baggio.

Muitos homens se sentiriam honrados com tal oferecimento, Mas isso não aconteceu com Baggio. Ficou furioso. Achava que seu futuro, a curto prazo, estava em dominar a Conferência de Puebla, no México, Acreditava que o futuro da Igreja se encontrava no Terceiro Mundo. A longo prazo, seu lugar era em Roma, o centro da ação. Em Veneza, estaria fora de vista e, o que era ainda mais importante, fora dos pensamentos, quando chegasse o momento de formular os planos futuros. A sua recusa em aceitar Veneza surpreendeu Luciani. A obediência ao Papa e ao Pontificado fora incutida em Luciani desde os seus primeiros dias no seminário em Feltre. A obediência que ele adquirira fora de uma natureza incontestável. Ao longo dos anos, à medida que sua carreira progredia, passara a questionar as decisões papais, especialmente nas questões do Vaticano S.A. e da Humanae Vitae, Mas seria inconcebível para Luciani liderar uma rebelião publicamente, mesmo em questões tão importantes. Aquele era o homem que, a pedido de Paulo, escrevera diversos artigos em apoio à linha papal; ao escrever um desses artigos, sobre o divórcio, entregara-o a seu secretário, Padre Mario Senigaglia, com o seguinte comentário:

— Tenho certeza de que isto me criará muitas dores de cabeça quando for publicado, mas o Papa pediu.

Recusar um pedido do Papa, da maneira arrogante como Baggio agora o fazia, era algo inadmissível. Os dois homens tinham noções de Valores completamente diferentes. Luciani considerava o que era melhor para a Igreja Católica. Baggio considerava o que era melhor Para Baggio.

Havia diversos motivos para que o Papa concluísse que Baggio devia ser transferido de Romã para Veneza. Um deles era um nome na lista de maçons que Luciani recebera: Baggio, nome maçônico Seba, número de Loja 85/2640. Registrado a 14 de agosto de 1957.

Luciani fizera mais indagações depois de sua conversa com o Cardeal Felici. Um comentário de Felici o preocupara:

— Alguns da lista são mesmo maçons, outros não.

O problema de Luciani era distinguir os genuínos dos falsos. As investigações ajudaram a produzir alguns esclarecimentos.

O encontro entre Baggio e Luciani foi-me descrito como "uma discussão muito violenta, com toda a violência e ira derivando inteiramente de Sua Eminência, enquanto o Santo Padre permanecia calmo".

Calmo ou não, Luciani tinha um problema sem solução na hora do almoço. Veneza continuava sem um Patriarca e Baggio insistia em que seu lugar era em Roma. Um pensâtivo Luciani começou a tomar sua sopa.

O veranico que Roma vinha desfrutando desde o início do mês foi substituido por um tempo mais frio naquela quinta-feira. Depois de uma breve sesta, Luciani resolveu confinar seu exercício diário a andar internamente, Começou a perambulâr pelos corredores. O Papa voltou a seu gabinete às 15:30 e deu diversos telefonemas. Conversou com o Cardeal Felici em Pádua e com o Cardeal Benelli em Florença. Discutiu os acontecimentos da manhã, inclusive a confrontação com Baggio, depois falou de sua reunião seguinte, que seria com Villot. As diversas decisões a que Luciani chegara estavam prestes a ser transmitidas ao Secretário de Estado,

Luciani e Villot sentaram a tomar um chá de camomila. Numa tentativa de se aproximar mais de seu Secretário de Estado, o Papa de vez em quando conversava com Villot em francês, durante as suas constantes reuniões. Era um gesto que o cardeal de Si. AmandeTaílende apreciava. Ficara impressionado com a rapidez com que Luciani assumira o Pontificado. A notícia transpirara da Secretaria de Estado para diversos amigos e antigos colegas de Luciani. Monsenhor Da Rif, ainda trabalhando em Vittorio Veneto, foi um dos muitos que receberam um relatório de progresso.

Do Cardeal Villot para baixo, todos admiravam a maneira de trabalhar do Papa Luciani. Sua capacidade de chegar à raiz dos problemas, de tomar decisões rápidas e firmes. Todos se impressionavam com a sua capacidade de executar múltiplas tarefas. Era evidente que se tratava de um homem que tomava decisões e as mantinha. Não cedia a pressões. Em minha experiência pessoal, essa capacidade de manter as suas decisões era uma das características mais notáveis de Albino Luciani.

Durante o final da tarde de 28 de setembro, Jean Villot recebeu uma demonstração prolongada dessa capacidade que tanto o impressionara durante o último mês. O primeiro problema a ser discutido era o Istituto per le Opere di Religione, o Banco do Vaticano. Luciani dispunha agora de muitas informações detalhadas. O próprio Villot já apresentara um relatório preliminar. Luciani também obtivera outras informações do segundo homem da Secretaria de Estado, Arcebispo Giuseppe Caprio, assim como de Benelli e Felici,

Para a Bispo Paul Marcinkus, que iniciara o plano e desempenhara um papel tão ativo para ajudar Calvi a assumir o controle do Banca Cattolica, era mais um dos muitos problemas pelos quais teria de prestar contas. Villot comunicou ao Papa que inevitavelmente transpiraria a notícia das investigações no banco. A imprensa italiana se tornava cada vez mais curiosa e uma grande repoitagem acabara de ser publicada.

A revista Newsweek contava obviamente com excelentes fontes no Vaticano. Soubera que, antes do Conclave, diversos cardeais haviam pedido a Villot um relatório completo sobre o Banco do Vaticano. Também informara que sua "fonte bem situada" dizia que havia um movimento no Vaticano para afastar Marcinkus. Citara literalmente a sua fonte curial: "Há um movimento para tirá-lo do banco. Ele será provavelmente nomeado bispo auxiliar."

Luciani sorriu.

— A Newsweek me diz quem colocarei no lugar de Marcinkus?

Villot sacudiu a cabeça. Enquanto a conversa continuava, Luciani deixou bem claro que não tinha a menor intenção de deixar Marcinkus na Cidade do Vaticano, muito menos no Banco do Vaticano. Depois de avaliar pessoalmente o homem numa entrevista de 45 minutos no início do mês, Luciani concluira que Marcinkus seria mais proveitosamente aproveitado como bispo auxiliar em Chicago. Não manifestará sua intenção a Marcinkus, mas a polidez fria demonstrada com o homem de Cicero não passara despercebida. Voltando a seu escritório no banco, depois da entrevista, Marcinkus confidenciara a um amigo:

— Talvez eu não fique aqui por muito mais tempo.

A Calvi e a outros colegas do banco, ele dissera:

— Não se pode esquecer que este Papa tem idéias diferentes do anterior. Haverá mudanças por aqui. Grandes mudanças.

Marcinkus estava certo. Luciani comunicou a Villot que Marcinkus deveria ser removido imediatamente. Não dentro de uma semana ou um mês. Mas no dia seguinte. Marcinkus deveria tirar uma licença. Um posto conveniente lhe seria escolhido, assim que o problema do Cardeal Cody estivesse resolvido.

Villot foi informado que Marcinkus seria substituido por Monsenhor Giovanni Angelo Abbo, secretário da Prefeitura de Assuntos Econômicos da Santa Sé. Como um elemento fundamental no tribunal financeiro do Vaticano, Monsenhor Abbo certamente levaria para o novo cargo uma profunda capacidade financeira.

A inspiração dos primeiros 100 dias do Papa João com toda certeza galvanizara Albino Luciani. As garras do leão, que seus íntimos esperavam ver reveladas, apareceram para Villot ao cair da noite de 28 de setembro, Luciani, um homem despretensioso e gentil, antes do Pontificado parecera muito menor do que o seu 1 ,75m de altura. Para muitos observadores ao longo dos anos, ele dera a impressão de se fundir com o papel de parede. Seu comportamento era tão discreto e sereno que, depois de uma reunião grande, muitos desconheciam a sua presença. Mas não houve qualquer dúvida para Villot sobre a presença e firmeza dele naquele dia. Luciani lhe disse:

Há outras mudanças no Istituto per de Opere di Religione que desejo executar imediatamente. Mennini, De Strobel e Monsenhor De Bonis serão afastados. Agora. De Bonis será substituido por Monsenhor Antonetti. Discutirei o preenchimento das outras duas vagas com Monsenhor Abbo. Quero que todos os nossos vínculos com o grupo do Banco Ambrosiano sejam cortados, o mais depressa possível. Na minha opinião, porém, será impossível conseguir-se isso com as pessoas que atualmente controlam a situação.

O Padre Magee comentou para mim:

— Ele sabia o que queria. Era bastante claro e objetivo em relação ao que queria. E a maneira com que se empenhava para alcançar seus objetivos era muito delicada.

A "delicadeza" estava em sua explicação a Villot. Os dois sabiam que Marcinkus, Mennini, De Strobel e De Bonis estavam inextricavelmente ligados não apenas a Calvi, mas também a Sindona. O que não se disse não podia ser citado erroneamente mais tarde.

O Cardeal Villot anotou as mudanças sem muitos comentários. Tomara conhecimento de muitas coisas, ao longo dos anos. Muitos no Vaticano consideravam-no ineficaz. Para Villot, no entanto, fora um caso de olhar para o outro lado deliberadamente. Era o que se chamava de técnica de sobrevivência na aldeia do Vaticano.

Luciani passou para o problema de Chicago e sua conversa com Baggio sobre o ultimato que seria apresentado ao Cardeal John Cody. Villot manifestou sua aprovação. Como Bâggio, ele considerava Cody como uma chaga supurada na Igreja nos Estados Unidos. O fato do problema ser finalmente resolvido proporcionava uma profunda satisfação ao Secretário de Estado. Luciani disse que gostaria que houvesse sondagens, através do núncio apostólico em Washington, sobre um possível sucessor para Cody. E comentou:

— Houve uma traição da confiança em Chicago. Devemos cuidar para que o homem que venha a substituir Sua Eminência tenha a capacidade de conquistar os corações e as mentes de todos na diocese.

Luciani discutiu a recusa de Baggio em aceitar a Sé de Veneza. Estava determinado a que Bãggio fosse para onde mandasse.

— Veneza não é um tranquilo mar de rosas. Precisa de um homem com a força de Baggio. Eu gostaria que você conversasse com ele. Diga-lhe que todos devemos fazer algum sacrifício neste momento. Talvez seja bom lembrar-lhe que eu não tinha a menor vontade de assumir este posto.

O argumento teria um valor limitado para um homem que desejara tão ansiosamente tornar-se o sucessor de Paulo, mas Villot diplomaticamente deixou de fazer essa observação.

Luciani em seguida informou a Villot de outras mudanças que planejava fazer. O Cardeal Pericle Felici se tornaria o Vigário de Roma, substituindo o Cardeal Ugo Poletti, que tomaria o lugar de Benelli como Arcebispo de Florença. Benelli se tornaria o Secretário de Estado. Assumiria o cargo de Villot.

Villot analisou as mudanças propostas, que incluía a sua própria "renúncia". Estava velho e cansado. Além disso, achava-se também gravemente doente. Uma doença que não atenuava com os dois maços de cigarros que fumava diariamente. Villot já deixara bem claro, ao final de agosto, que desejava uma aposentadoria prematura. Agora, conseguia o que desejava um pouco mais cedo do que previra. Haveria, é claro, um período de transição, mas para todos os efeitos e propósitos seu poder estava agora acabando. O fato de Luciani propor substitui-lo por Benelli deve ter sido particularmente irritante para Villot, Beneldi fora o seu segundo homem no passado e o relacionamento deles não fora dos mais felizes.

Villot estudou as anotações que fizera sobre as mudanças propostas, Albino Luciani, largando as suas próprias anotações, serviu mais chá para ambos. Villot disse:

— Pensei que estivesse pensando em Casaroli para me substituir,

— E pensei mesmo, por algum tempo. Acho que a maior parte do seu trabalho é extraordinária, mas partilho as restrições de Giovanni Benelli a algumas de suas iniciativas no passado recente com relação à Europa Oriental.

Luciani aguardou algum sinal ou palavra de estimulo. O silêncio prolongou-se. Durante todo o relacionamento entre os dois, Villot nunca abandonara seu formalismo; sempre havia a máscara, sempre havia a frieza. Luciani tentara, diretamente e também por intermédio de Felici e Benelli, injetar um pouco de cordialidade em suas relações com Villot. Mas persistira a frieza profissional que era a característica do cardeal. O silêncio acabou sendo rompido por Luciani, que perguntou:

— E então, Eminência?

— Sua Santidade é o Papa. Tem absoluta liberdade para decidir.

— Sei disso. Mas qual é sua opinião?

Villot deu de ombros.

— Essas decisões agradarão a alguns e deixarão outros consternados. Há cardeais na Cúria Romana que se empenharam a fundo por sua eleição e agora se sentirão traidos. Acharão que as mudanças, as nomeações que apontou, são contrárias aos desejos do falecido Santo Padre.

— O falecido Santo Padre por acaso planejava fazer nomeações vitalícias? Quanto aos cardeais que alegam terem se empenhado com afinco por minha eleição, quero que compreenda uma coisa. Já disse isso muitas vezes, mas obviamente preciso continuar a insistir, Não procurei a eleição para Papa. Não queria ser Papa. Não pode mostrar um único cardeal a quem eu tenha proposto qualquer coisa. Não há ninguém a quem eu tenha persuadido, por qualquer forma, a votar em mim. Não era o meu desejo. Não foi minha obra. Há homens na Cidade do Vaticano que esqueceram seu propósito. Reduziram este lugar a um mero mercado. E por isso que estou efetuando as mudanças.

— Dirão que traiu a Paulo,

— Será dito também que trai a João. Traí a Pio. Cada um formulará sua própria lista, de acordo com suas necessidades e conveniências. Minha preocupação é não trair a Jesus Cristo,

A conversa se prolongou por quase duas horas. Villot se retirou às 19:30.

Voltou ao seu escritório que ficava próximo, sentou a uma escrivaninha e pôs-se a estudar as mudanças. Depois, abriu uma gaveta e tirou outra lista. Talvez fosse apenas coincidência. Todo o pessoal clerical que Luciani estava removendo constava de supostos maçons. A relação divulgada por Pecoreldi, o desencantado membro da P2. Marcinkus. Villot. Poletti. Baggio. De Bonis. E todos os substitutos indicados por Luciani estavam notavelmente ausentes da lista de maçons. Benelli. Felici. Abbo. Antonetti.

O Cardeal ViIlot largou a lista e estudou outro documento que estava em sua mesa. Era a confirmação final de que o encontro proposto entre o comitê americano que cuidava do controle populacional e Albino Luciani seria realizado a 24 de outubro. Um grupo de representantes do governo dos Estados Unidos que desejava mudar a posição da Igreja Católica em relação à pílula anticoncepcional se encontraria dentro de algumas semanas com um Papa que desejava efetuar a mesma mudança. Villot levantou-se e deixou os papéis à vista, descuidadamente. O leão realmente revelará as suas garras.

Assim que terminou a reunião com Villot, às 19:30, Albino Luciani pediu ao Padre Diego Lorenzi para entrar em contato com o Cardeal Colombo, em Milão. Lorenzi informou-o um momento depois que Colombo só estaria disponível às 20:45. Enquanto Lorenzi voltava à sua mesa de trabalho, o Papa recebeu a companhia do Padre Magee. Juntos, recitaram a parte final do breviário diário, em inglês. Quando faltavam 10 minutos para as 20:00, Luciani sentou para jantar, com Magee e Lorenzi. Absolutamente tranquilo, apesar da prolongada reunião com Villot, ele conversou jovialmente, enquanto as Irmãs Vincenza e Assunta serviam o jantar de sopa, vitela, vagens frescas e saladas. Luciani tomou alguns goles de água enquanto Loren.z.i e Magee bebiam vinho tinto.

Na extremidade da mesa, o Padre Lorenzi lembrou-se de repente que o Pontificado de Luciani já ultrapassara o mais curto da história papal. Estava prestes a fazer um comentário a respeito quando o Papa começou a mexer no seu relógio novo. Era um presente do secretário de Paulo, Monsenhor Macchi, depois dos comentários curiais de que o Papa não deveria usar um relógio velho e avariado. Ao que parecia, isso representava uma imagem negativa. E assim se reduzia o Papa à mesma posição de um vendedor de carros de segunda mão, que precisa tomar cuidado para que sua calça esteja sempre impecavelmente passada. A última vez que Luciani fora visitado pelo irmão Edoardo presenteou-o com o relógio dizendo:

— Aparentemente não é permitido ao Papa usar um velho relógio usado que se precisa constantemente dar corda. Você se ofenderia se eu o desse a você?

Luciani acabou entregando o relógio a Magee, para acertar pelo noticiário da televisão. Faltava um minuto para as 20:00.

Logo depois de um jantar agradável e tranquilo, o Papa foi para seu gabinete, a fim de examinar as anotações que usara durante a sua conversa com Villot. As 20:45, Lorenzi fez a ligação para o Cardeal Colombo, em Milão. O cardeal recusou-se depois a conceder uma entrevista, mas outras fontes indicam que eles conversaram sobre as mudanças que Luciani tencionava efetuar. Obviamente, não houve divergência. O Cardeal Colombo recordou depois, sem fazer outros comentários:

— Ele me falou por bastante tempo, num tom absolutamente normal, pelo qual não se podia inferir qualquer doença física. Estava cheio de serenidade e esperança. Sua saudação final foi "reze",

Lorenzi anotou que a conversa telefônica terminou por volta das 21:15. Luciani examinou então o discurso que tencionava fazer para os jesuítas no sábado, dia 30. Antes, ele telefonara para o Superior Geral dos Jesuítas, Padre Pedro Arrupe, avisando-o que diria algumas coisas a respeito de disciplina. Ressaltou que uma parte do discurso seria relacionada com as mudanças que acabara de efetuar.

Todos sabem e com razão se preocupam com os grandes problemas econômicos e sociais que conturbam a humanidade hoje e que estão intimamente ligados com a vida cristã. Ao se encontrar uma solução para esses problemas, no entanto, há que se distinguir entre as tarefas dos padres e as dos religiosos leigos. Os padres devem sempre estimular e inspirar a laicidade a cumprir seus deveres, mas não devem assumir seu lugar, negligenciando a sua tarefa especifica de evangelização.

Largando o discurso, pegou as anotações sobre as mudanças drásticas que discutira anteriormente com Villot. Foi até à porta de seu gabinete, abriu-a e deparou com o Padre Magee e o Padre Lorenzi, Despediu-se deles, dizendo:

— Buona notte. A domani. Se Dio vuole. (Boa noite, Até amanhã. Se Deus quiser.)

Faltavam alguns minutos para as 21:30, Albino Luciani fechou a porta do gabinete. Pronunciara as suas últimas palavras. Seu cadáver seria encontrado na manhã seguinte. As circunstâncias precisas dessa descoberta deixam bem claro que a Vaticano tentou encobrir. Começou com uma mentira, depois continuou com uma teia de mentiras. Mentiram sobre pequenas coisas. Mentiram sobre grandes coisas. Mas todas as mentiras tinham o mesmo propósito: encobrir o fato de que Albino Luciani, Papa João Paulo I, fora assassinado em algum momento entre 21:30 de 28 de setembro e 4:30 de 29 de setembro de 1978.

Albino Luciani foi o primeiro Papa a morrer sozinho em mais de um século.., mas também fazia muito mais tempo desde que um Papa fora assassinado.

Cody. Marcinkus. Villot. Calvi. Gelli. Sindona. Pelo menos um desses homens decidira-se por um curso de ação que foi executado durante o final da noite de 28 de setembro ou na madrugada do dia seguinte. Esse curso de ação derivava da conclusão de que a Solução Italiana tinha de ser aplicada. O Papa devia morrer.