HISTÓRIA E CULTURA

As escolas clássicas de armas do Japão - Parte 1

espada topo umA arte da espada de Choisai Sensei - Em 1447, Henrique VI ocupava o trono da Inglaterra. O exército inglês havia sido expulso da França pela segunda e última vez e a Guerra das Duas Rosas estava prestes a começar. A palavra “marcial” estava entrando no uso comum; fora introduzida na língua inglesa por Geoffrey Chaucer, pouco mais de cinqüenta anos antes. Era provavelmente usada por jovens de boa família, conhecedores das artes marciais de sua época. Eles aprendiam a usar a espada e o machado de guerra, e eram instruídos nas regras dos torµeios, nos quais se usavam a lança, a maça e o escudo. Depois de um ritual de iniciação que começava com uma vigília de uma noite inteira perante o altar, o cavaleiro seguia o código de cavalaria pelo resto de sua vida. Em 1447, o Japão não era uma nação unificada. A população se dividia ...

em grupos rivais comandados pelos senhores feudais locais, ou daimios. Numa época de guerra contínua, os jovens aprendiam o bujutsu, as virtudes marciais, e sua educação incluía as artes de luta do kyu-jutsu, ou arte do arco; do ken-jutsu, ou arte da espada; do naguinata-jutsu, ou arte da alabarda; do so-jutsu, ou arte da lança; e a arte do uso de um sem-número de outras armas.

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A diferença essencial entre as duas culturas resume-se no fato de que, no Japão, essas mesmas artes ainda são ensinadas. A mais antiga das escolas de combate do Japão que sobrevivem até hoje foi fundada em 1447. Os ensinamentos estabelecidos pelo fundador continuam sendo transmitidos sem alteração alguma.

Tenshin Shoden Katori Ryu

katana a alma do samurai

 

A mais importante de todas as academias de artes marciais do Japão fica a alguns quilômetros de Narita, o novo aeroporto internacional de Tóquio, numa região que já foi uma área rural pacífica. É como se no condado semi-rural de Sussex, perto da pista principal do Aeroporto de Gatwick, em Londres, houvesse uma escola que ensinasse desde a Idade Média as artes da justa e do torneio. Na Tenshin Shoden Katori Shinto Ryu, o praticante pode aprender a usar uma espada de samurai para lutar contra um homem trajado de armadura medieval e armado de bastão, alabarda, lança ou espada longa ou curta. O fato de os ensinamentos da escola não terem sido alterados em função das mudanças de vida ocorridas no século XX revela uma coerência e uma firmeza raras até mesmo no Japão.

Os alunos da Tenshin Shoden Katori Shinto Ryu estudam uma arte marcial pura. O objetivo da escola é o de aperfeiçoá-la, de desenvolver as técnicas por cujo aperfeiçoamento muitos homens morreram no passado. As lições aprendidas em combate constituem uma parte importante dos ensinamentos. É por isso que os alunos mais avançados têm uma firmeza tão grande. Essa firmeza não poderia ser atribuída a outros motivos, uma vez que não há vantagem alguma, do ponto de vista prático, em estudar lá em vez de estudar numa escola que ensine uma arte de autodefesa, como o aikidô ou o karatê. Lá, os discípulos aprendem o sistema clássico de combate com armas, no qual cada movimento foi concebido para matar ou ferir de morte o adversário.

katana 2

 

Os objetivos da escola permanecem os mesmos desde a sua fundação, há quase 550 anos: formar espadachins versados em todos os aspectos da arte da guerra, desde o uso das armas até os conhecimentos táticos, logísticos e até médicos.

Os alunos da escola sabem que estão partilhando de um conhecimento histórico raríssimo, até mesmo único, que deve ser conservado e transmitido às gerações futuras. Em reconhecimento desse fato, o governo do Japão deu à escola um título de honra sob a forma de um nome: “Um Valor Cultural Inestimável” .

As Origens Feudais

samurais

 

O fundador da Katori Shinto Ryu, lizasa Choisai lenao Sensei ou Choisai Sensei (a expressão Sensei significa “mestre”), nasceu no ano de 1387 na localidade que hoje se chama Takomachi, na prefeitura de Chiba (a cerca de 64 quilômetros de Tóquio). Aparentemente, ele participou de algumas batalhas campais e essa experiência levou-o a perceber que o tipo de guerra que estava ocorrendo não poderia conduzir senão à destruição das famílias e das linhagens.

A Tenshin Shoden Katori Shinto Ryu foi fundada em 1447 por lizasa Choisai lenao Sensei. O atual chefe da Ryu, Mestre Otake, sempre se lembra da expressão calma e pacífica da face do Fundador nessa imagem, comparando-a com a atitude feroz em que são representados a maioria dos mestres espadachins.

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Por isso, quando a família Chiba caiu em desgraça e foi por fim derrotada, Choisai Sensei separou-se de sua própria família e foi viver no recinto mais interno do Santuário Katori. Tinha 60 anos quando se retirou para viver como recluso no Santuário.

No Japão, há dois santuários especialmente famosos dedicados às artes marciais. O Santuário Katori encontra-se numa colina baixa cujo topo é recoberto de árvores grandes e antiqüíssimas. As mais antigas são amarradas com cordas, à maneira da religião xintoísta. Os templos e outros edifícios do santuário foram construídos em meio às árvores. O Santuário Kashima fica lá perto; ambos ainda são focos de peregrinação importantes e populares.

Naquela época, aconteceu que um dos discípulos do Fundador foi lavar um cavalo numa nascente chamada Fonte Divina ou Fonte do Deus, perto do Santuário Katori. Pouco tempo depois, o cavalo começou a sofrer de dores e morreu.

Para Choisai, esse acontecimento foi uma revelação do poder divino da divindade xintoísta adorada no Santuário Katori, divindade essa que se chama Futsunushi-no-Kami. A morte do cavalo deu-lhe uma espécie de intuição espiritual do poder da divindade. Por isso, ele decidiu passar mil dias em adoração no Santuário Katori. Nesse período, dedicou-se a austeras práticas de purificação e estabeleceu para si um cronograma rigoroso de treinamento marcial.

Ao final desse período de penitência e treinamento, ele estabeleceu os ensinamentos que constituem a Katori Shinto Ryu.

A guarda da katana

 

Choisai Sensei acreditava que havia descoberto os ensinamentos diretos e verdadeiros do deus Futsunushi-no-Kami, adorado no Santuário Katori, e por isso antepôs ao nome Katori Shinto Ryu a expressão tenshín shoden, que significa “tradição celeste”. Isso nos dá o nome completo da tradição, ‘Tenshin Shoden Katori Shinto Ryu’, que significa ‘a tradição marcial que é o caminho dos deuses’. Como a palavra ‘Shinto’, que significa ‘o caminho dos deuses’, significa o caminho verdadeiro e correto que os homens devem seguir, à semelhança de todas as tradições xintoístas que nos foram transmitidas desde os tempos antigos, está implícita nela a idéia de um caminho que as pessoas devem trilhar com um coração sincero. Ao que parece, foi assim que Choisai Sensei entendeu esse conceito e usou-o em sua tradição marcial.”

A linha de sucessão da escola jamais foi rompida. O atual Mestre da Tenshin Shoden Katori Shinto Ryu é o vigésimo da sucessão, embora não seja um mestre praticante. Por isso, é Otake Sensei, o Mestre de Treinamento, que transmite a tradição para os discípulos. Ele não ensina somente as técnicas de luta, mas também os conhecimentos eruditos de uma escola do Budismo esotérico.

A Filosofia do Fundador

armas

O fundador, Choisai Sensei, viveu até os 102 anos de idade e deixou uma grande quantidade de ensinamentos, tanto filosóficos quanto práticos. São esses os ensinamentos transmitidos por Mestre Otake.

No centro de todos esses ensinamentos há um trocadilho. O trocadilho se expressa na língua japonesa, mas depende, para ser compreendido, dos caracteres chineses que exprimem as mesmas palavras. Em japonês, a palavra heího significa todo o currículo marcial de uma escola tradicional de uso de armas, mas as suas origens lingüísticas são muito mais complexas:

Dos ensinamentos de Choisai Sensei, aprendemos que a palavra heího, escrita com os caracteres japoneses, significa ‘o método do soldado’. Escrita com caracteres chineses, entretanto, heího adquire o sentido de ‘pacífico’ ou ‘calmo’.

Portanto, o método marcial é uma verdadeira via de combate; mas quem é capaz de assimilar o currículo inteiro (da Katori Shinto Ryu) descobre que ele se torna uma via de paz.

Chegamos a descobrir que a vitória pela morte do adversário não é uma vantagem verdadeira. É esse o sentido da paz.

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Assim, no bujutsu, ou seja, nas artes marciais, nós praticamos técnicas que foram criadas para matar outro ser humano. No treinamento, praticamos artes em que, quando um parceiro se move, o outro é morto. Não obstante, os ensinamentos de Choisai Sensei deixam claro que, muito embora o treinamento seja feito desse modo, não é correto matar as pessoas com a espada. Fazem-nos ver que ser homem não é só ser forte e poderoso. O simples fato de termos a força necessária para destruir não nos levará em nenhuma direção produtiva.

Se assim fosse, os animais que dependem unicamente do seu poder e da sua força para sobreviver, como o leão e o tigre, simplesmente continuariam a crescer e multiplicar-se até dominar completamente a Terra. A verdade é que isso não acontece. Valer-se unicamente da força bruta é o caminho dos animais.

Na qualidade de seres humanos, temos de seguir um caminho diferente, um caminho em que não é correto manifestar abertamente a própria força. No bujutsu, nas artes marciais, é essencial que sejamos muito fortes. Não obstante, é igualmente necessário que não revelemos a nossa força. Precisamos compreender uma forma mais elevada de sabedoria humana e manter oculta a nossa força bruta. É por isso que Choisai Sensei falava de heiho, o método da paz.

O Desenvolvimento da Katori Shinto Ryu

Os guerreiros e estrategistas de todo o Japão costumavam ir aos Santuários Katori e Kashima para prestar homenagem às duas divindades marciais. Era bastante natural, por isso, que, como já haviam viajado tanto para chegar ao santuário, fizessem uma parada no local onde Choisai Sensei ensinava para ver se conseguiam aprender alguma coisa. Naquela época, sempre que alguém lançava um desafio ao chefe de um dojô ou sala de treinamento, ocorria um shiai, ou seja, um duelo ou uma luta, geralmente com a espada de madeira (boken). Essa luta era coisa muito séria. Um golpe da espada de madeira pode causar ferimentos graves e, se pega na cabeça, pode até matar.

O Santuário Katori

O santuário Katori, um dos mais importantes santuearios xintoístas do Japão. Ele é dedicado a Futsunushi-no-kami, a divindade da espada.

Depois de estabelecer o seu local de treinamento no Santuário Katori, Choisai Sensei tornou-se tão conhecido que, se permitisse os torneios de shiai, haveria uma pessoa morta quase todos os dias. Por isso, ele proibiu de modo expresso e rigoroso todos os combates.

Até hoje em dia, a Katori Shinto Ryu proíbe que qualquer um dos seus praticantes se envolva em combate com outra pessoa antes de ter chegado ao grau de menkyo ou Mestre Licenciado. É certo que um dos dois duelistas seria gravemente ferido ou mesmo morto. É por isso que se diz que shiai, o torneio, é sinônimo de shiniai, que significa ‘encontrar-se para buscar a morte’. É outra maneira de dizer que qualquer espécie de combate é uma coisa muito séria, uma questão de vida ou morte.

Em decorrência disso, desde aquela época, as competições de luta são proibidas na Katori Shinto Ryu. Choisai Sensei ensinava que a forma ideal de vitória era aquela que podia ser obtida sem o combate nem o uso de armas.

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Mestre Otake

“Abaixo do nível de vitória obtido numa competição amistosa está a vitória obtida quando se fere o oponente. A terceira forma de vitória, e a mais baixa de todas, é a que se obtém matando-se o oponente. Choisai Sensei ensinava que a forma ideal de vitória era a que podia ser obtida sem luta e sem violência.”

PARTE 2